No
ocaso de outro dia as cinzentas nuvens de chuva turvavam ainda mais a
costumeira penumbra. A garoa cerrava os olhos, comprometendo a percepção já tão
prejudicada. Tudo aconteceu naquele sutil limite entre o pôr-do-sol e o acender
da iluminação pública.
O
passo acelerado evidenciava pressa ou atraso, características inerentes àquela
cidade. Buzinas aqui, sirene ali, tudo em um oceano de "outros" tão
ou mais apressados, tão ou mais atrasados, motorizados ou não. "Essa merda
de farol quebrado de novo!"
No
coração uma tempestade. Preocupações, sonhos, frustrações, saudades, contas,
"mandei ou não aquele maldito email?". Houve um tempo no qual seria
recebido em casa com queixas por sair tão tarde do trabalho. Agora a origem das
queixas morava noutra casa. Amava outro. "Deve estar feliz!"
Quanta
coisa havia desejado ser. Quão pouco havia sido. "Vou estudar coisas de
TI. Isso dá dinheiro!" Nunca foi muito de "trabalho com o que
gosto". Até ali tivera ao menos cinco profissões distintas e passara por
incontáveis empresas. "Desta vez vai rolar. Está decidido. Amanhã mesmo
procuro um curso!"
Estava
radiante como uma criança com um novo brinquedo. Seu vício era este.
Expectativas, projetos, mudanças de rumo, de estratégia, de uniforme. "Mas
sinto que é agora!".
Clarão
nalgum ponto distante no céu. Estrondo segundos depois. "Tá vindo o maior
toró e eu ainda aqui. Preciso chegar e dormir cedo. Me preparar pra vida nova que começo amanhã!"
Já
não se via o Sol, dado o acúmulo das nuvens. "cumulus nimbus?". Ainda
não se via a luz pública, só o amarelo piscante dos faróis quebrados. "É
agora!"
Disparou
com os olhos cerrados mergulhando na confusa mistura de garoa, penumbra e
automóveis. Buzina soou alta. Já a fricção da borracha no asfalto foi quase inaudível,
lubrificada que estava a área de contato pela chuva. Momento ímpar no sutil
instante entre o ocaso e a luz da noite. Três metros separavam dois corações
completamente estranhos um ao outro, tão intimamente conectados naquele
desconcertante momento. Um disparava freneticamente. O outro parava
eternamente. Garoa, sangue e olho cerrados.
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