segunda-feira, 14 de agosto de 2023

#Verborragia: Sangue

 O ferimento na cabeça e a cascata que dali fluía turvavam os olhos e a mente, manchando o mundo com infinitos tons de vermelho. O elmo voara para longe alguns lances de golpes atrás, talvez nunca estivera ali.

Sem escudo, Vikram segurava a espada com as duas mãos, tentando manter à distância o inimigo que quase não enxergava. Não era inclinado ao uso da espada, destacando-se desde o início como lanceiro. Naquele momento nem os deuses sabiam onde a lança estava, testando-lhe com o emprego, desesperado, da espada de um estranho já abatido.

Embora não pudesse ver, estava cercado. Sua tropa, derrotada, espalhava-se pelo chão em todas as direções. Já os inimigos reuniram-se em círculo, estabelecendo o perímetro no qual o general se divertiria com ele por alguns instantes. Não havia saída.

O ferimento no coração e a cascata que Indra lançava do céu manchavam o mundo de cinza. Quinze anos antes da derradeira batalha era o amor o maior vilão da história de Vikram. Sua inalcançável amada Meera casara-se em meio a magníficos rituais, com Devendra, o valoroso guerreiro escolhido pelo seu pai. Duzentas vacas, o dote, marchavam à frente do cortejo, enquanto o camponês que não tinha campo observava ao longe. Vikram não conseguiria notar, mas a chuva tornou-se rala e o sol conseguiu atravessar as nuvens, enchendo o mundo de luz refletida e, por alguns minutos, um arco-íris. Para todos na festa a chuva foi um, muito bem vindo, presente de Indra para aplacar o calor. Para ele foi um véu sobre os olhos, cegando-lhe para tudo mais na vida.

"Se querem um guerreiro, terão um guerreiro."

Retirou-se resoluto. Em sua terra foi rejeitado, considerado de casta que jamais poderia pegar em armas. Fugiu para o Sul. Num vilarejo encontrou abrigo e trabalho com um ferreiro, ao qual narrou sua dor e sonho. O ferreiro, amigo do soldado que treinava os novatos, conseguiu que este aceitasse o rapaz, não que parecesse vigoroso, mas argumentando sobre sua incansável determinação.

Aconteceu assim: dia após dia, mês depois de mês, o rapaz se destacava em cada treinamento, em cada prova, em cada desporto, crescendo em força, destreza e fama. A lenda do camponês de coração partido que virou campeão circulava por todos os povos. Virou parábola contada aos filhos antes de dormir, tentando ensinar algo sobre persistência.

Quinze anos se passaram até o momento em que foi convocado para o combate contra um reino do norte.

Em uma planície de nome já esquecido as duas tropas se encararam. A vantagem numérica do Norte aterrorizou o coração do Sul, mas Vikram postou-se à frente e conversou com seus aliados:

"Amados irmãos do sul. Meu sangue está ali do outro lado, pois foi no norte que nasci e cresci. Meu sangue está lá, mas meu coração está aqui, pois foi aqui que fui acolhido, aqui que fui abraçado e aqui que fui respeitado como um igual. Quando lutarmos, estaremos lutando por isso: pelo respeito. Se morrermos, teremos morrido pelo que é certo. Então, não vamos recuar."

Um rugido de leão se levantou a partir da tropa do sul e, por um instante, pareceu que o próprio  Narasimha estava ali. Com os corações assim inflamados lançaram-se à batalha e, por um tempo, isso pareceu bastar. Abatiam os inimigos com facilidade e a inferioridade numérica parecia irrelevante. 

No momento seguinte, porém, a certeza da vitória converteu-se em arrogância, a arrogância fomentou o descuido, o descuido plantou a semente da derrota; o Norte prosperou.

As tropas do Norte erram movidas por uma organização inabalável. Era evidente que o treinamento era totalmente voltado à disciplina, muito mais que força ou qualquer outra habilidade marcial. No momento oportuno esse detalhe demonstrou o seu valor: o sul pareceu.

Os soltados do norte formaram um círculo ao redor do último soldado, e um corredor por meio do qual seu general caminhou até aquele ponto. Gritavam, sem parar, com um mantra: Maharani, Maharani, Maharani...

Maharani chegou e observou o cego que agitava a espada a esmo. Um pobre coitado sem elmo, sem lança, quase sem dignidade, dada a derrota de sua tropa e, ainda assim, imenso. Não era um homem grande , mas o tamanho do seu espírito era notável e, por respeito, foi o que impediu a tropa do norte de eliminá-lo. Respeito.

Maharani o observou e cravou sua lança no chão. Em seguida removeu seu elmo, soltando-o como se nada fosse. Saccudiu a cabeça para realinhar os longos cabelos castanhos, enquanto o mantra da tropa se reforçava: Maharani, Maharani, Maharani .

O general, desarmado, caminhou rumo ao inimigo cego. Era tarde.  Vikram caiu de joelhos, ainda que não tivesse recebido qualquer novo golpe. Os ferimentos anteriores bastavam para encerrar a batalha. Percebendo que era o fim desistiu da espada, cravando-a no chão, ao seu lado.

A cascata de sangue de sua cabeça perdeu a intensidade, devolvendo-lhe parte da visão enquanto Maharani se aproximava. O general do Norte se ajoelhou e juntou duas mãos às do inimigo moribundo.

"Você se tornou um campeão. Sua vida foi nobre. Na próxima, serei sua."

Então Vikram olhou bem fundo nos olhos do inimigo, então reconheceu Meera.

"Louvados sejam os deuses que deram força aos teus soldados, amada minha.

Louvado seja cada homem e cada golpe que me enfraqueceu, infinitamente Amada Meera.

Cada soldado teu foi um deus e um guru, amorosamente me poupando do terrível pecado de cruzar armas contigo, infinitamente Amada Meera.

Na próxima vida, serei teu."

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