sexta-feira, 1 de julho de 2022

#Verborragia: Mudo

A palavra de hoje é "Mudo":

Aplausos efusivos. Auditório cheio. Flash's eventuais em detrimento do alerta prévio para evitar fotos.

Agradeceu encabulado; a timidez não era simulada. O espanto constante com o entusiasmo das reações também não. Gostava de falar; talvez fosse a única coisa que admitia fazer bem; única atividade na qual não se considerava medíocre; mas ainda assim tinha certeza que "não era pra tanto!".

Não escreve; Nunca gostou de escrever; durante toda a vida escolar nunca foi considerado mais que mediano; não havia foco nos conteúdos; falar com os vizinhos de carteira sempre foi infinitamente mais interessante .

"Se não tomar jeito vai ser sempre medíocre!", ouviu uma professora dizer à mãe, certa vez. Nunca esqueceu.

Se sentia realizado, até certo ponto. Falava interruptamente, ora remunerado, como nas palestras, ora de graça, quando com amigos. A facilidade de comunicação abriu todas as portas possíveis, preencheu lacunas, completou eventuais dificuldades técnicas, garantia companhia, risadas, passeios, trabalho. Ainda assim, sempre faltou algo. Sempre havia companhia, satisfações táteis; nunca afeto. Muitos namoros; nunca amor. 

"Amor é balela. O mundo é das necessidades!" foi tema de uma palestra que virou livro (mediante evidente recorrências a um ghostwriter). Há boatos que o livro foi tema de estudos em uma iniciação científica de algum estudante de outro Estado.

Notas medianas durante toda a graduação não impediram um alcance infinitamente maior que o dos melhores alunos da mesma turma. "O Homem que nunca se cala!" era a manchete numa importante revista que narrou o impacto daquele sujeito. "Marcos Nogueira" nos autógrafos; "Marcão" para os não poucos amigos; "Vazio" na segunda metade de todas as noites (aquela parte na qual os amigos já foram embora e a companhia dormiu).

Certa vez caminhava pelos átrios de um centro de convenções. Havia sido contratado para falar aos funcionários de uma multinacional sobre os desafios da Comunicação no mundo atual. Desatento, passou por um olhar que lhe chamou a atenção quase tarde demais. Tentou olhar para trás, a tempo apenas de ver um vulto entrar em outro corredor. Seguiu seu próprio rumo.

A palestra "Não existem medíocres!" foi um sucesso. 

Aplausos efusivos. Auditório cheio. Flash's eventuais em detrimento do alerta prévio para evitar fotos. Algo mudou. Enquanto sacudia as mãos como quem diz "parem", reforçava ao microfone"Muito obrigado. Muito obrigado." enquanto pensava "já está bom.". O olhar sempre corria pela multidão em uma tentativa de demonstrar respeito, ao mesmo tempo que ignorava todos, constrangido pela ideia de fixar o olhar em alguém. Naquela noite peculiar seus olhos atingiram, acidentalmente, uma moça que aplaudia em pé na primeira fila. A distância e iluminação deixavam impossível identificar a cor, mas ainda assim parecia haver um brilho próprio, indiferente à iluminação local e aos flash's.

Nunca se fez inacessível; era praxe atender a longa fila de pessoas que se formava logo após cada evento, uns para congratula-lo, outros para obter autógrafos, outros ainda tentando obter dicas ou tirar dúvidas. Entre um atendimento e outro tentava analisar a extensão da fila, esperançoso de reencontrar aquele olhar. Só encontrava frustração.

Já exausto, pediu para sentar. A sensibilidade do público fez diminuir as questões, mantendo-se apenas os pedidos de autógrafo. Já não olhava a fila. Quase não olhava para cada próxima pessoa que chegava. Olhos para baixo, ouvia o nome e escrevia a dedicatória.

A sensação de ter dormido vinte horas ou ter bebido um litro de café, a plenitude do vigor físico e vigilância mental o tomaram inteiro quando a voz do último "próximo" rasgou seu coração.

"Boa noite. Camila, por favor. Você consegue escrever algo para mim? Não repetir a mesma frase que escreveu para todos."

A mão congelou. Levantou-se tão rápido que quase esqueceu de colocar a cadeira pra trás, projetando a pequena mesa na direção da moça, que saltou pra trás.

O olhar era aquele na multidão; o mesmo do corredor.

Por favor, entenda: Não havia lembrança ali. Nada de reencontro. Saudade alguma. Era o primeiro olhar. A primeira voz.

Não havia medo nela, nem com o movimento brusco que ele fez. Havia algo de imenso, nobre, não era possível descrever.

Uma beleza simples, distintas destas que se costuma buscar. Serenidade e alguma tristeza no olhar. Solidão, talvez. Um vestido simples lhe protegia a pele, sem qualquer intenção de provocar.

Olhares entrelaçados por meia dúzia de eternidades. Ninguém desviava. Ninguém se rendia.

Nem Deus sabia onde foram livro e caneta. Nem Deus queria saber.

O mundo se desfez. Retroagiu-se ao império do Logos, ao verbo do princípio, ao "Fiat!".

"Camila" foi tudo que com conseguiu dizer. Parecia a palavra mais preciosa do mundo.

A moça parecia completamente indiferente ao absurdo do cenário: o salto, a carteira, o silêncio, o som do seu nome. "Marcos", ela respondeu, e sua voz parecia música.

O homem deu um passo e meio à frente enquanto arrastava a mesa para fora do caminho. A mulher não recuou um único centímetro.

Beijaram-se como se beijam os jovens enamorados; partes iguais de amor e fúria; devoção e desejo.

"Fiat Eros!", e o Amor nasceu.

"Fiat Pax!", E o Mundo fez sentido.

Marcos foi Marcos uma noite inteira; Vazio virou uma lembrança distante, quase um boato.

Em um encontro impossível…

o homem que nunca se cala…

ficou mudo.

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