Ele então caminhou até a janela, esperando que o quadro vivo e mudo desse
alguma resposta plausível. A dúvida do homem do deserto acompanhara o
médico durante toda a vida, levando-o a buscar no espírito dos outros a
resposta que não encontrava no seu. Não queria deixar Marcus sem resposta, mas
não pretendia criar algo vazio.
- Como poderíamos definir se o “eu” deve ser resgatado ou descoberto?
Criamos noções superficiais de identidade, nas quais fincamos raízes e das
quais não abrimos mão. Se cada identidade é um construto do indivíduo tão
perfeitamente elaborado a ponto de convencê-lo a si mesmo de que aquilo é seu
“eu”, como então falar de busca ou descoberta?
Marcus olhava o homem de branco na janela e tentava descobrir se aquelas
questões eram para ele ou para o próprio médico. Concluiu que não fazia
diferença ser paciente ou médico, louco ou racional, estavam ambos em
expressões diferentes da mesma busca.
- Acha que sou um louco?
- Eu jamais admiti tal expressão, por pior que fosse o quadro de um
paciente. O que eu experimento aqui, dia a dia, são formas diferentes de
relacionamento com o ambiente e com o interior existencial. Aquilo que você
chamaria de loucura é, para mim, um rompimento em menor ou maior grau com a
realidade cotidiana. Este rompimento pode ter consequências devastadoras, mas
se observado da forma adequada, pode evidenciar características do interior
humano as quais de outra forma estariam irrevogavelmente vetadas.
- Este raciocínio eu não acompanhei.
- Não estou falando de comportamento, embora também no comportamento isto
se aplique. Pense no seguinte: É natural que um homem sinta atração física por
uma mulher. Até mesmo por um outro homem, já que não estamos discutindo a
sexualidade. Esta atração, que é um desejo de praticar o ato sexual, pode ser
entendida com o próprio ato em estado latente. Ela pode converter-se em um
evento concreto, caso este indivíduo tenha sucesso ao cortejar aquela pessoa.
Quando ocorre a ruptura com a existência racional, a necessidade de ir ao ato
supera qualquer outro mecanismo de controle, sendo possível ocorrer então o
abuso sexual. Mas note, mesmo que nem todos os homens cometam o abuso, o ato
sexual em estado latente encontra-se em todos, ou na maioria.
- Então além de tudo eu sou um tarado?
Após conter as próprias risadas, o médico explicou:
- É claro que não! Pelo menos, acredito que não. O que quero que perceba
é que, para além da questão sexual, uma variedade virtualmente infinita de
inclinações e até mesmo de potenciais estão latentes em todos os indivíduos,
como características intrínsecas do homem, mas nem sempre vem à tona, assim,
por vezes, é na tal da “loucura”, no rompimento com o mundo como nos é dado,
que podemos trazer à tona estas potencialidades antes ofuscadas pelo cotidiano
e pela racionalidade. Isto nem é sempre é um mal! Quanta produção artística de
qualidade indiscutível veio de indivíduos com algum tipo de distúrbio
facilmente tachável de “loucura”?
Continua em #Vazio - Outra Manhã (19)
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