- Então sou um poeta?
- Começo a duvidar de que esteja levando a sério esta nossa conversa?
- Pelo contrário. Estou achando tudo isto muito interessante!
- O fato é que não se tem omeletes sem quebrar os ovos! Você é, digamos,
uma criança que ignora o sabor da omelete! Eu também! A única diferença entre
nós é que você está quebrando os ovos.
- Gostei disto!
- Eu também!
Agora foi Marcus quem riu.
- Não ria! Estamos aqui em um processo no qual nós dois estamos tentado
aprender algo. Boa parte do que eu te disse eu criei, ou aprendi, no exato
momento em que conversamos.
Um bip interrompeu a conversa. Marcus esperou que o médico sacasse de um
suporte no cinto um daqueles velhos bips que via na televisão, mas do bolso
veio um pequeno celular.
- Ora bolas, como o tempo voa não? Tenho outros para visitar. Logo virá o
seu almoço. Vou ver se incluo omelete em seu cardápio. Volto no início da
tarde.
- Até logo doutor.
Com metade do corpo já fora do quarto o médico emitiu um último
comentário:
- Se for possível evitar a sesta, eu ficaria imensamente agradecido.
Marcus ficou rindo sozinho no quarto. Esticou os braços e pernas,
espreguiçando-se. O movimento lhe imprimiu forte dor nas costas e pernas, dando
a impressão de que os ferimentos estavam prestes a reabrir, mas o prazer de
gratidão emitido pelos seus músculos compensava aquilo. Levantou e voltou para
a janela. Parecia olhar o movimento lá fora, mas era para seu próprio interior
que seu olhar se voltava. Ainda não estava preparado para simplesmente assumir
aquele quarto como realidade concreta, muito menos rotular o deserto como
ilusório, mas o fato é que a conversa com o médico faria sentido em qualquer um
daqueles mundos.
Começou a desejar a sesta desencorajada pelo médico, questionando-se se
seria um portal para o deserto. Temia o estado em que seu corpo pudesse estar,
mas a curiosidade por compreender melhor a tal “omelete” fazia sua mente se
expandir. Infinitas possibilidades se debatiam em sua cabeça como um imenso
cardume em rede recém puxada. “Preciso chegar ao Leste!”, repetia para si,
“Preciso chegar ao Leste!”.
Continua em #Vazio - Outra Manhã (20)
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