sexta-feira, 21 de outubro de 2022

Verborragia: Sogra

 Para entender o motivo da Verborragia clique aqui (Participe! É grátis e fará um [pseudo]autor muito feliz!   https://outrosdialogos.blogspot.com/p/verborragia.html ).  A palavra de hoje é #Sogra.

Ansiedade imperava no dia que Miguel seria levado por Camila para conhecer sua mãe.

Namoravam há cinco meses, sem contar outros três de encontros casuais, e agora a moça se sentia pronta para levar o rapaz em casa.

sexta-feira, 14 de outubro de 2022

#Verborragia: Tocha

Para entender o motivo da Verborragia clique aqui (Por favor Participe! É grátis e fará um [pseudo]autor muito feliz! ).  A palavra de hoje é #Tocha.

Do alto da torre tudo que se podia ver do mundo naquela insólita noite nublada eram trevas, fossem aquelas naturais, percebidas pela quase plena ausência de qualquer algo que se pudesse ver, fosse pela crueldade nos corações dos homens que habitavam as adjacências.

Sobre "o quê se via" podemos dizer que, à distância, algo como uma grande serpente de fogo rastejava para fora de um bosque, sinuosa e lentamente seguindo para a base da torre.

Sobre "quem via", tratava-se de Sophia, jovem mulher totalmente despida da virtude que seu nome sugeriria; ao menos era isso que narravam os homens portadores de tochas em fila indiana há algumas centenas de metros dali.

O motivo era muito simples, conforme explicou Damião, homem simples mas de porte e atos nobres, líder do vilarejo nas decisões cotidianas e cabeça da serpente que se aproximava. Segundo ele, Sophia era bruxa, pecadora desde o nascimento, amante do que é errado e corruptora de corações castos. Quem duvidaria de Damião?

O plano também era simples: pra que capturar? Pra quê o trabalho de montar a fogueira? Queimemos com torre e tudo.

Sophia, simples menina do campo, nunca aprendeu a ler as letras dos homens; quem ensinaria? Em vez disso lia o mundo:  a relação das plantas com as estações, o comportamento dos insetos, a beleza das flores, a dança das nuvens. Tudo que não estivesse dentro de uma construção humana -diga-se casas e templos- a fascinava profundamente.

Ia à vila uma vez por mês, vender as batatas e cenouras que cultivava e comprar outras coisas que eventualmente precisasse. Chamava a atenção pela extrema beleza e pelo constante ar de distração: nunca estava observando a rua ou os transeuntes; estava constantemente olhando o céu, trilhas de formigas ou ervas saindo das frestas de alguma casa. Chamou a atenção, particularmente, de Damião; despertou-lhe desejos esquecidos desde sua própria juventude. O homem observava a moça à distância; decorava seus hábitos; estudava seus costumes.

Certa feita se aproximou para comprar batatas: "Seus cabelos lembram as ondas no trigal em dia de sol e vento!"

A moça sorriu encabulada; ele pagou o dobro do valor:

"Isso é pelas batatas; isso é em gratidão por esse sorriso.". Todo mês uma frase, um cortejo, um passo a mais na aproximação. A ingenuidade juvenil era reforçada pela quase total ausência de gentileza em sua rotina; ela era infinitamente gentil com tudo e todos, não me interprete mal, mas nunca recebia gentileza em troca; em casa apenas ordens e pesares; na vila trocas comerciais às pressas: "me dê cinco destas", "quero aquele", "hoje estão feias, não vou pagar tudo isso".

Tudo que sabia sobre ternura estava armazenado em fragmentadas lembranças das histórias de cavaleiros que sua mãe contava: homens sempre justos, bondosos, protetores por definição. As ilusões sobre os heróis preenchiam as lacunas de Damião e o convertiam num tipo de ideal pelo qual ansiar; inconscientemente cultivava renovada estima por si mesma, começando a julgar-se especial como as donzelas das histórias, já que a infinita perspicácia do herói a havia selecionado; justo ela entre tantas.

Caminhava com mais confiança, coluna ereta, olhar firme, despertando desejo de outros homens e inveja das mulheres. Não o fazia por mal; apenas se sentia maior e se portava com tal.

Demoraram treze luas para que Damião substituísse a cortesia galante pela investida direta; a moça, cega pelo encantamento, nem notou a variação, entregando-se quase inerte a tudo que ele tentava, um toque, um beijo, um avanço. Naquela noite ele pediu que ela não voltasse à fazenda, levou-a ao celeiro de sua própria residência e ali a iniciou em todos os atos que a feira e o sol o impediam de realizar. Os dois estavam cegos, bêbados de encantamento mútuo, e com isso não perceberam os pontos de luz laranja se movendo no chão, nas paredes e até em suas peles. Eram feixes da luz de tochas de pessoas se aproximando do celeiro; os feixes atravessavam frestas da construção de má qualidade e dançavam pelo ambiente. Quando o portão foi aberto em supetão o olhar da esposa de Damião era fúria; há meses era alertada pelas mulheres da vila mas só agora seus receios tomavam forma; estava acompanhada por três mulheres revestidas de "eu falei!" e dois homens tentando disfarçar a inveja com frases de desaprovação.

Damião, a mente mais ágil de todo o vilarejo, se colocou de joelhos implorando perdão e falando de maldades e magia da menina que empurrou para o lado. A garota não teve tempo de analisar ou compreender as frases desesperadas de seu amado herói; tomada por vergonha e medo, enrolou suas roupas sobre o corpo e saiu correndo por uma porta que existia nos fundos do imóvel. 

Sumiu na noite enquanto as pessoas amparavam Damião como se fosse vítima de uma agressão terrível. O homem aprendeu sobre a moça o suficiente para informar seus parceiros que a moça jamais correria para casa; certamente teria corrido para a velha torre abandonada, "o melhor lugar do mundo para ver o por do sol! O melhor jeito de ficar sozinha! O único lugar seguro no mundo!", como ela mesma havia dito meses antes. Enquanto alguns ouviam o homem narrar os absurdos de sedução e pecado que a moça teria praticado enquanto insistia no vil plano de tomar para si o mais correto homem da cidade, outros corriam pelas ruas gritando "Bruxa! Acordem! Vamos capturar a Bruxa!". Homens, mulheres e fúria começaram sua marcha em fila, portanto tochas, forcados, foices e porretes.

Quando a maldade e o fogo chegaram aos pés da torre a moça, lá no alto, já não era mais capaz de enxergar; olhos cegos pelas cascatas de lágrimas geradas pela tristeza, decepção e terror. A torre era herança de gerações passadas, época de guerras e invasões; era concebida para guardar o caminho e possuía mecanismos de pedra que a selavam por dentro, tornando-a impenetrável quando deliberadamente fechada, coisa que a moça sabia bem, depois de a analisar e explorar por tantos anos. Damião sabia que não seria fácil abrir a porta e não tinha intenção de fazê-lo. A estrutura de rocha possuía algumas conexões em madeira maciça, muito resistente ao tempo, conforme demonstrava sua permanência ali, mas madeira queimaria, mesmo que precisassem passar a noite inteira tentando.

O "Capitão da Honra" mandou trazerem em uma carroça madeira, feno e óleo e orientou que fossem colocados ao redor de toda a base da construção. O fogo foi logo ateado; chamas da altura dos homens lançavam grande quantidade de fumaça preta em direção ao alto. O vento, suave mas constante, impedia que entrasse pelas aberturas da torre, garantindo ar à criatura assustada lá dentro; a menina nada sabia de magia, mas tudo sabia do mundo, da vida, da beleza, não seria isso magia? O mesmo vento que afastava a fumaça negra abriu caminho entre as nuvens criando uma fresta na abóboda celeste, tornando possível espiar um pouco do fundo; a luz da lua, então em quarto crescente, entrou pela janela com fragilidade maior que a da menina; luz fraca demais para tornar visível o ambiente; forte o suficiente apenas para tornar possível notar a própria lua. Olhando para cima a menina conversou com a lua como quem fala com uma irmã. Perguntava em que havia errado; qual teria sido o crime; porque a perseguiam daquele modo? o céu fechou novamente, devolvendo ao quarto e ao coração a escuridão e o medo.

As vigas de madeira que subiam verticalmente a torre, como estrias nas rochas, começaram a se entregar às chamas. O fogo subia lento, quase relutante, mas não desistia. Ouviam-se estalos tão fortes que não se sabia distinguir se realmente vinham da madeira ou se eram protestos da própria rocha. Um trovão distante iluminou o mundo por um instante e, novamente, o mundo de trevas com aquele pequeno núcleo de fogo era tudo o que existia. Quando o fogo havia escalado a torre suficientemente a ponto de se observar que quase alcançava o "posto dos arqueiros", andar no qual se escondera Sophia, um segundo trovão iluminou o mundo, seguido de um estalo muito forte na torre, como se ela própria fosse o terceiro trovão; com o estalo um pedaço de pedra do tamanho de uma melancia se desprendeu caindo com velocidade; o estalo forte chamou a atenção, de tal forma que quase todos os presentes observaram a queda; não se assustaram nem recuaram, pois estavam em distância segura, dada a necessidade de evitar a fogueira montada na base da torre; a pedra mergulhou no fogo instantes antes de um grito de dor emergir do aglomerado de justiceiros; conforme se voltavam para entender o evento localizaram Damião de joelhos, gritando e gemendo, com as mãos no rosto ensanguentado, alvejado que foi por estilhaços de madeira, farpas e fragmentos de brasa. Ninguém mais foi ferido. A pedra, ao que parece, atingiu a lenha em posição exata para projetar aquele material especificamente naquele alvo. A pedra havia caído, todos viram, de um ponto abaixo das aberturas do alto da torre, sendo impossível ter sido lançada por alguém; notando que o lance não poderia ter sido feito por mãos humanas, parte do grupo sentiu seu julgamento validado, chamando o ato de bruxaria e renovando a intensidade da gritaria e do ódio; outra parte, porém, estremeceu com o evento, imaginando se não estariam errados e se aquilo não seria, simultaneamente, um castigo para Damião e um alerta para eles. Começaram a vacilar em seu ímpeto e se retirar do local; ninguém que desistia tentava dissuadir quem ficava. Um terceiro trovão, quarto se você estiver contando o estalo da torre, soou com muito mais força, aparentemente muito mais perto; ocorreu mais um,  outro; e outro, após os quais uma segunda luz de fogo surgiu no horizonte, disputando intensidade com a luz da base da torre. Apesar de todo o silêncio provocado pelo susto dos trovões em sequência não era possível aos homens na torre escutar os gritos das pessoas no vilarejo; gritos de espanto, medo, desespero e dor. Corriam como formigas, uns tentando apagar as chamas iniciadas pelas descargas elétricas, outros tentando movimentar escombros ou socorrer feridos. Mesmo sem conhecimento deste cenário, quase todas as pessoas na torre debandaram rumo à vila, adivinhando a situação pela luminosidade crescente. Damião foi carregado na carroça que haviam usado para trazer o material da fogueira. Junto à torre sobraram seis pessoas, uma delas a mulher traída; gritavam com ódio na direção do alto da torre, ofendendo a menina lá dentro, ignorante que havia chorado até dormir de exaustão. Por alguns instantes o mundo inteiro pareceu parar; não havia nem mesmo brisa, apenas os estalados da lenha sob a torre. Foi como se o Universo parasse um instante para se concentrar, ou tomar fôlego, ou pegar impulso; no momento seguinte veio um vento tão violento que a fumaça se dissipava antes de se tornar visível; duas pessoas quase se desequilibradas, tombando para o lado; mais um instante e uma chuva igualmente violenta se juntou ao vento; a água caindo com força e abundância não demorou para extinguir todo o fogo da torre; se a chuva não fosse tão densa, tornando invisível qualquer coisa a mais de três passos, teriam observado que até o fogo na vila havia cedido . Cinco pessoas recuaram, sobrando apenas Ana, despida do orgulho e da raiva, convencida que os sinais protegiam o menina e denunciavam o marido, que só não decidira ali mesmo em tornar "ex" por não conhecer o termo ou o ato. A mulher parecia ela mesma uma torre, imóvel e indiferente ao vento forte; na mão direita ainda estava a tocha, obviamente apagada; dos olhos cascatas de lágrimas mediam forças com a tormenta.

Sophia acordou com canto de pássaros e os primeiros raios do sol nascente atravessando as aberturas, outrora destinadas ao posicionamento de arqueiros, e acariciando-lhe o rosto. Demorou alguns minutos para reunir coragem e espiar o mundo; quando o fez viu que o Sol despontava no horizonte navegando em um céu perfeitamente azul, escandalosamente limpo. Olhando para baixo nada dos aldeões, apenas os vestígios encharcados da fogueira e uma tocha plantada no chão, vestígio final de Ana, que nunca mais foi vista.

Desde então a velha torre de vigia passou a ser chamada "A Torre da Bruxa", um tabu, um percurso evitado por gerações. Sophia, que nunca soube dessa história, mudou-se para muito longe,  um lugar sem heróis nem suas maldades, sem torres nem tochas, mas repleto de muito amor por tudo o que não estava dentro de construções humanas.

quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Pra não dizer que não cantei Maria

 Se o que dá beleza à Vida é a certeza do termo

Quem foi o tolo que decidiu que o amor seja eterno?

Qualquer homem que teve uma única flor mortal no jardim

Desprezará todas aquelas de plástico, ainda que sejam sem fim