Passou a imaginar se haveria qualquer conexão entre as duas realidades.
Concluiu que não valeria a pena fugir do hospital e caminhar para o Leste, uma
vez que não havia por ali qualquer movimento para o Oeste.
Antes que pudesse se
aprofundar em suas cogitações, a sequência de pensamentos foi interrompida pela
abertura da porta. A mesma enfermeira da manhã retornava com uma bandeja.
Marcus prontamente se instalou no leito, ajudando-a a montar o suporte para a
refeição, constituída por um prato fundo de sopa de legumes e um copo
descartável com suco de laranja. A ausência de omelete não o surpreendeu.
Apesar do pouco sal, apreciou a refeição, com caldo um pouco mais grosso que a
anterior e uma concentração maior de legumes. O copo de suco estava bem cheio,
quase transbordando. Respingos de suco no papel sobre a bandeja evidenciavam a
dificuldade para trazê-lo cheio até ali. O homem da cama demorou alguns
instantes para beber, examinando a borda do copo, imaginando-se minúsculo
caminhando sobre ela, com um oceano de puríssimo suco de laranja de um lado e
um abismo no outro, além de uma boca descomunal pronta para engolir tudo aquilo
em poucos segundos. Bebeu o suco imaginando Valdomiro pendurado em sua garganta
gritando “Mas eu não! Eu estarei agarrado a este mundo mesmo quando não houver
mais vida neste corpo!”.
Pouco depois de concluída a refeição, a silenciosa enfermeira
retornou ao quarto, recolheu a bandeja e se foi. Sozinho e com sono, Marcus
decidiu se levantar, antes que cochilasse. Notou então, pela primeira vez, um
criado mudo ao lado de sua cama. Decidiu abrir a gaveta, em busca de algo para
ler e passar o tempo. Encontrou apenas um pequeno caderno de capa dura e uma
caneta. Tomando-os para si percebeu que as páginas estavam completamente em
branco. Imaginou se seria capaz de escrever algo, mas teve receio, já que não
tinha recebido autorização direta para utilizar aquele material. Voltou para a
janela e começou a escrever, mentalmente, um diário. Procurou recordar traços
de seu cotidiano, mas não se lembrava de nada até a manhã do vendaval. Passou
então a reconstruir, da forma mais detalhada que conseguia, os momentos daquela
manhã surreal. Percebendo que se perdia em suas memórias sem um suporte
palpável no qual organizá-las, decidiu pegar o caderno. Caso fosse censurado
pelo ato, que incluíssem um caderno novo em sua “conta”. Sentou-se na cama, com
as pernas esticadas e o caderno sobre uma delas. Pensou em intitular “Loucura”.
Tendo feito um grande “L” na parte superior da primeira folha, arrependeu-se do
nome. “Eu jamais admiti tal expressão...”, havia dito o médico. Riscou o “L”
construindo uma cerquilha sobre ele. Ao lado do símbolo incluiu o título mais
adequado, “Vazio”. Abaixo dele, em letras menores, começou a deixar o texto fluir
na exata forma em que lhe vinha à mente.
Continua em #Vazio - Outra Manhã (21)
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