sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

#Vazio - Outra Manhã (20)


Passou a imaginar se haveria qualquer conexão entre as duas realidades. Concluiu que não valeria a pena fugir do hospital e caminhar para o Leste, uma vez que não havia por ali qualquer movimento para o Oeste.
Antes que pudesse se aprofundar em suas cogitações, a sequência de pensamentos foi interrompida pela abertura da porta. A mesma enfermeira da manhã retornava com uma bandeja. Marcus prontamente se instalou no leito, ajudando-a a montar o suporte para a refeição, constituída por um prato fundo de sopa de legumes e um copo descartável com suco de laranja. A ausência de omelete não o surpreendeu. Apesar do pouco sal, apreciou a refeição, com caldo um pouco mais grosso que a anterior e uma concentração maior de legumes. O copo de suco estava bem cheio, quase transbordando. Respingos de suco no papel sobre a bandeja evidenciavam a dificuldade para trazê-lo cheio até ali. O homem da cama demorou alguns instantes para beber, examinando a borda do copo, imaginando-se minúsculo caminhando sobre ela, com um oceano de puríssimo suco de laranja de um lado e um abismo no outro, além de uma boca descomunal pronta para engolir tudo aquilo em poucos segundos. Bebeu o suco imaginando Valdomiro pendurado em sua garganta gritando “Mas eu não! Eu estarei agarrado a este mundo mesmo quando não houver mais vida neste corpo!”.
Pouco depois de concluída a refeição, a silenciosa enfermeira retornou ao quarto, recolheu a bandeja e se foi. Sozinho e com sono, Marcus decidiu se levantar, antes que cochilasse. Notou então, pela primeira vez, um criado mudo ao lado de sua cama. Decidiu abrir a gaveta, em busca de algo para ler e passar o tempo. Encontrou apenas um pequeno caderno de capa dura e uma caneta. Tomando-os para si percebeu que as páginas estavam completamente em branco. Imaginou se seria capaz de escrever algo, mas teve receio, já que não tinha recebido autorização direta para utilizar aquele material. Voltou para a janela e começou a escrever, mentalmente, um diário. Procurou recordar traços de seu cotidiano, mas não se lembrava de nada até a manhã do vendaval. Passou então a reconstruir, da forma mais detalhada que conseguia, os momentos daquela manhã surreal. Percebendo que se perdia em suas memórias sem um suporte palpável no qual organizá-las, decidiu pegar o caderno. Caso fosse censurado pelo ato, que incluíssem um caderno novo em sua “conta”. Sentou-se na cama, com as pernas esticadas e o caderno sobre uma delas. Pensou em intitular “Loucura”. Tendo feito um grande “L” na parte superior da primeira folha, arrependeu-se do nome. “Eu jamais admiti tal expressão...”, havia dito o médico. Riscou o “L” construindo uma cerquilha sobre ele. Ao lado do símbolo incluiu o título mais adequado, “Vazio”. Abaixo dele, em letras menores, começou a deixar o texto fluir na exata forma em que lhe vinha à mente. 

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