Enquanto concluía a última frase, o homem que falava do abismo ergueu-se,
caminhando em direção aos dois que lhe eram estranhos. Parecia erguer-se sobre
eles como uma onda, pois sua estatura era desconcertante. O homem trajava um
grande manto que mais parecia um cobertor jogado sobre seu corpo. Era magro e
calvo, com o maxilar desenvolvido de forma desproporcional ao restante da
cabeça. Andava com dificuldade, apoiando-se sobre um pesado pedaço de madeira
que utilizava como cajado. A estatura do homem, que beirava os três metros de
altura, fazia Marcus pensar se não seria aquele cajado o tronco inteiro de uma
árvore, arrancado de suas raízes com um só golpe e esvaziado de seus galhos com
o segundo. Apesar da dificuldade em caminhar, não aparentava idade.
Não parecia
estar nem perto dos trinta anos. O gigante interrompeu seus passos a meio
caminho do outros, apoiando-se com as duas mãos no cajado enquanto procurava
recuperar o fôlego. Aparentemente, aqueles poucos passos eram para ele um
imenso esforço. Tentando recuperar a solenidade, endireitou-se e inquiriu:
- Agora, como é de meu direito, faço eu a pergunta que de inicio foi-me
usurpada. Alto! Quem vem lá?
Marcus não pode conter a risada, pois achava um tanto cômica toda aquela
situação, sobretudo a forma de falar do estranho à sua frente. O gigante, por
sua vez, não pareceu incomodado com o riso, supondo que o tenha percebido.
Valdomiro julgou que o homem, apesar do tamanho, não representava perigo. Em
seus incontáveis anos como porteiro, sempre investigando silenciosamente quem
entrava e quem saia, adquiriu a capacidade quase metafísica de perceber as
intenções que as pessoas escondiam em seu intimo. Raramente errava. Segurou a
lança então com apenas uma mão e em seguida inverteu seu balanço, levando a
ponta afiada ao solo. O gigante interpretou aquele gesto como um sinal de paz,
como se visse o guardião desarmando-se.
- Eu sou Valdomiro! O Guardião da Muralha! Este é Marcus, o guardião do
guardião.
Marcus riu da segunda parte. A primeira parecia incomodar o gigante.
- Meu bom amigo! Uma vez que tenha decido conferir a mim, de bom grado, a
sua maior riqueza, seu próprio nome, tomo a liberdade de chamá-lo “Meu bom
amigo”. Mas, sendo eu agora um amigo, tenho o dever fraterno de ser-lhe
sincero, e sendo-o, digo que não julgo oportuno vosso título.
Valdomiro entendeu claramente o “Meu bom amigo”, nada mais. Esperou que o
gigante continuasse o comentário sobre o “título”, apenas para retrucar que não
participava de eleições havia muito tempo.
- Observe o poder e imponência desta formação geográfica a qual denomina
“Muralha”. Note então que não necessita de guarda, parecendo a mim que é você
quem precisa ser guardado. Se, por outro lado, denomina-se “guardião” por
defender quem passa por ela, então temos aí novo equivoco, já que em extensão
ela supera, creio, uma vida de tua lenta caminhada, não sendo possível a você
assistir quem por ela passa em toda a área que excede a ínfima fração que você
pode cobrir. Finalmente, e espero que nisto não se ofenda, não o julgo capaz de
guardar nem tuas adjacências, caso por elas tente passar tudo o que tenho visto
passar.
Continua em #Vazio - A Fome das Sombras (6)
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