segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

#Vazio - Outra Manhã (21)


Não desejando transformar aquilo em um diário, optou pela terceira pessoa. O texto fluía enquanto o tempo passava. A sala estava em chamas, tomada pelas cores avermelhadas do sol poente, mas ele desprezava a fome que pedia pelo jantar. Desejava escrever. As letras escorriam de suas mãos e alimentavam o papel enquanto o ato criativo alimentava sua própria alma. Uma batida de porta em alguma sala no corredor interrompeu seu frenesi. Percebeu ter escrito mais de 20 páginas. “Deve bastar, por hoje!”. Revolveu as folhas e retornou à primeira. Encostou-se com mais conforto no leito para verificar o que produzira:

“Levantou apressado ‘É tarde’. Fitou o quarto ‘Ninguém’. Gritou sem resposta. Confuso, retornou à rotina matinal. Perdido, saiu...”
O peso de suas pálpebras o cegou antes que pudesse ler a terceira linha. Sentiu-se como um motorista sonolento na iminência do acidente. A certeza do impacto não o desperta; a insensatez o impede de parar. Cochilou assim, com caneta caída à sua direita e caderno à esquerda. O hospital e o mundo ao redor dele não precisaram de vendaval para serem desconstruídos; bastou o fechar dos olhos e nada mais era, nada mais havia. Tudo novamente negro. O mundo novamente vazio. Apenas um pulso ínfimo de consciência garantia a Marcus não ser ele mesmo igual ao nada ao redor. A ausência do colchão nas costas ou do lençol sobre as pernas o fez duvidar se haviam costas e pernas. Quis tocar-se, mas não podia mover os braços, supondo a presença de algum. Desejou respirar fundo, mas não sentiu ar nem pulmões. Teve dificuldade de compreender o tempo, mas em algo que poderia ser pouco mais de um segundo ou pouco menos de três eternidades seu corpo decidiu existir, e existiu como dor. Profunda dor nas costas, coxas e panturrilhas. Percebeu também braços e peitos, aqueles cruzados e depositados sobre este, mas nada pode mover. Sentia uma tênue brisa penetrar-lhe os pulmões, mas não dispunha de força para beber do mundo todo o ar que desejaria. Novamente perdeu o contato com seu corpo, reduzindo-se à trevas e consciência por outra eternidade.
Pensou no tamanho do Universo. Pensou na velocidade com que a parte material se expande. Em seguida, imaginou uma onda de luz se expandindo para fora da onda de matéria. O prelúdio do Universo seguindo para além de seus limites. Imaginou-se então como terceira onda. Sua consciência vagando fora dos campos espaciais nos quais os primeiros raios da luz primordial pudessem ter alcançado. Por um momento sentiu-se possuidor de todos os mistérios, conhecedor da causa primeira e do motivo último. Por um breve momento soube. Em seguida pensou na palavra “engrenagem”. Em certa ocasião, dialogando com um amigo sobre trivialidades, necessitava da palavra “engrenagem” para completar seu raciocínio, mas a palavra, “na ponta da língua”, lhe escapava.

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