Não desejando transformar aquilo em um diário, optou pela terceira
pessoa. O texto fluía enquanto o tempo passava. A sala estava em chamas, tomada
pelas cores avermelhadas do sol poente, mas ele desprezava a fome que pedia
pelo jantar. Desejava escrever. As letras escorriam de suas mãos e alimentavam
o papel enquanto o ato criativo alimentava sua própria alma. Uma batida de
porta em alguma sala no corredor interrompeu seu frenesi. Percebeu ter escrito
mais de 20 páginas. “Deve bastar, por hoje!”. Revolveu as folhas e retornou à
primeira. Encostou-se com mais conforto no leito para verificar o que
produzira:
“Levantou apressado ‘É tarde’. Fitou o quarto ‘Ninguém’. Gritou sem
resposta. Confuso, retornou à rotina matinal. Perdido, saiu...”
O peso de suas pálpebras o cegou antes que pudesse ler a terceira linha.
Sentiu-se como um motorista sonolento na iminência do acidente. A certeza do
impacto não o desperta; a insensatez o impede de parar. Cochilou assim, com
caneta caída à sua direita e caderno à esquerda. O hospital e o mundo ao redor
dele não precisaram de vendaval para serem desconstruídos; bastou o fechar dos olhos
e nada mais era, nada mais havia. Tudo novamente negro. O mundo novamente
vazio. Apenas um pulso ínfimo de consciência garantia a Marcus não ser ele
mesmo igual ao nada ao redor. A ausência do colchão nas costas ou do lençol
sobre as pernas o fez duvidar se haviam costas e pernas. Quis tocar-se, mas não
podia mover os braços, supondo a presença de algum. Desejou respirar fundo, mas
não sentiu ar nem pulmões. Teve dificuldade de compreender o tempo, mas em algo
que poderia ser pouco mais de um segundo ou pouco menos de três eternidades seu
corpo decidiu existir, e existiu como dor. Profunda dor nas costas, coxas e
panturrilhas. Percebeu também braços e peitos, aqueles cruzados e depositados
sobre este, mas nada pode mover. Sentia uma tênue brisa penetrar-lhe os
pulmões, mas não dispunha de força para beber do mundo todo o ar que desejaria.
Novamente perdeu o contato com seu corpo, reduzindo-se à trevas e consciência
por outra eternidade.
Pensou no tamanho do Universo. Pensou na velocidade
com que a parte material se expande. Em seguida, imaginou uma onda de luz
se expandindo para fora da onda de matéria. O prelúdio do Universo seguindo
para além de seus limites. Imaginou-se então como terceira onda. Sua
consciência vagando fora dos campos espaciais nos quais os primeiros raios da
luz primordial pudessem ter alcançado. Por um momento sentiu-se
possuidor de todos os mistérios, conhecedor da causa primeira e do motivo
último. Por um breve momento soube. Em seguida pensou na palavra “engrenagem”.
Em certa ocasião, dialogando com um amigo sobre trivialidades, necessitava da
palavra “engrenagem” para completar seu raciocínio, mas a palavra, “na ponta da
língua”, lhe escapava.
Continua em #Vazio - A Fome das Sombras
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