sexta-feira, 25 de maio de 2012

#Vazio - A Fome das Sombras (22)


- Algo me diz que é uma sombra!
- Pois é! Mas não estou acostumado a ver sombras passeando por aí sem um corpo que as produza.
- Aqui acontece muita coisa que a gente não “ta” acostumado a ver, Rapaz! Agora me ajude!
- O que você vai fazer?

- Ora! A gente tem que comer, não? Preciso pegar minha lança de volta!
- Você vai descer?
- Eu esperava alcançar a lança me pendurando aqui!
- Não sei não!
- A gente precisa comer!
Marcus segurou as duas mãos de Valdomiro enquanto este começava a descer a encosta do degrau com os pés, de constas para o abismo. Quando estava totalmente pendurado, o guardião soltou-se de Marcus, o qual ficou deitado sobre o patamar agarrando um dos braços. Valdomiro esticou a mão na direção da lança, que estava quase a noventa graus, em relação ao solo. Com muito esforço conseguiu roçar o dedo médio na ponta do cabo de vassoura. Infelizmente, nada mais. Retornou a mão livre ao parapeito, cansado que estava o outro braço; dedos prestes a ceder.
- Vou ter que descer!
Marcus sabia que não poderia dissuadi-lo, assim, soltou o braço e o guardião pulou. Caiu em pé, sem se desequilibrar, com um dos pés quase em cima da sombra. Aproximou-se e com isto percebeu que não se tratava apenas de um contorno no chão. Se conhecesse o termo teria dito “Não é bidimensional”. Mesmo de perto era profundamente negro, despido de detalhes, mas tinha volume. Ergueu-se e aproximou a mão do cabo da lança, mas não a tocou. Reteve-se por um instante, provavelmente temendo que o movimento da arma despertasse a criatura. Tomando nova coragem, agarrou a lança com as duas mãos e a removeu com um movimento forte e rápido. No solo a criatura inanimada continuava perfeitamente negra. Nenhum sinal de ferida ou sangue. Só foi possível inferir a existência de sangue quando percebeu que não era possível ver o canivete. Estava envolto em algo que o deixava igualmente negro. Um buraco na existência, sem fundo visível. Só o contorno da lamina era perceptível. Com um movimento rápido balançou a ponta, que desprendeu gotas do sangue negro no solo seco do degrau. Desejou jamais ter descido ali. Os respingos no chão começaram a se mover, tomando a forma de minúsculas aranhas, igualmente negras. Sete, no total. Valdomiro entrou em desespero. Jogou a lança para o degrau superior e em seguida pulou com toda a força, tentando alcançar a quina para subir. Falhou. Àquela altura as aranhas haviam caminhado vagarosamente pelo chão, uma na direção da outra, fundindo-se ao se tocar e dando origem a um corpo maior. Uma única aranha negra com o tamanho do polegar de Valdomiro. Simultaneamente, os respingos do sangue que caíram no patamar superior quando a lança foi jogada começaram a realizar a mesma operação, formando uma segunda aranha a poucos metros de Marcus. Desesperado, mas sem esquecer do amigo, Marcus se deitou sobre o patamar, estendendo os mãos para baixo, as quais foram alcançadas pelo segundo salto de Valdomiro, que foi imediatamente içado. A aranha começou a subir pela parede rochosa com a mesma facilidade de qualquer outra aranha, enquanto a segunda caminhava em direção do calcanhar de Marcus. Os dois correram para a estrada sem apanhar a lança. Olharam pra trás e viram uma aranha de uns dez centímetros de envergadura alcançar a borda oeste, provavelmente nascida da reunião das duas aranhas de outrora. Correram para o Leste, rumo à água. A aranha parecia enxergar seu desespero e se movia em linha reta na direção dos dois, já com a água pela cintura. Quando sua primeira pata tocou a água algo pareceu feri-la, pois recuou rapidamente. Ficou alguns instantes parada, rente ao limite entre a água e a rocha. Seus olhos, mesmo invisíveis, exalavam ódio. Apesar de pequena, a assustadora criatura exprimiu um urro tão profundo quanto o da noite anterior! Marcus caiu de joelhos, com a água quase no queixo! As pernas de Valdomiro também se abalaram, mas ele conseguiu manter o equilíbrio. Então os contornos negros moveram-se novamente e, dando as constar aos homens embebidos em água e suor, retornou para a borda oeste, desaparecendo no precipício.

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