- Algo me diz que é uma sombra!
- Pois é! Mas não estou acostumado a ver sombras passeando por aí sem um
corpo que as produza.
- Aqui acontece muita coisa que a gente não “ta” acostumado a ver, Rapaz!
Agora me ajude!
- O que você vai fazer?
- Ora! A gente tem que comer, não? Preciso pegar minha lança de volta!
- Você vai descer?
- Eu esperava alcançar a lança me pendurando aqui!
- Não sei não!
- A gente precisa comer!
Marcus segurou as duas mãos de Valdomiro enquanto este começava a descer
a encosta do degrau com os pés, de constas para o abismo. Quando estava
totalmente pendurado, o guardião soltou-se de Marcus, o qual ficou deitado
sobre o patamar agarrando um dos braços. Valdomiro esticou a mão na direção da lança,
que estava quase a noventa graus, em relação ao solo. Com muito esforço
conseguiu roçar o dedo médio na ponta do cabo de vassoura. Infelizmente, nada
mais. Retornou a mão livre ao parapeito, cansado que estava o outro braço;
dedos prestes a ceder.
- Vou ter que descer!
Marcus sabia que não poderia dissuadi-lo, assim, soltou o braço e o
guardião pulou. Caiu em pé, sem se desequilibrar, com um dos pés quase em cima
da sombra. Aproximou-se e com isto percebeu que não se tratava apenas de um
contorno no chão. Se conhecesse o termo teria dito “Não é bidimensional”. Mesmo
de perto era profundamente negro, despido de detalhes, mas tinha volume. Ergueu-se
e aproximou a mão do cabo da lança, mas não a tocou. Reteve-se por um instante,
provavelmente temendo que o movimento da arma despertasse a criatura. Tomando
nova coragem, agarrou a lança com as duas mãos e a removeu com um movimento
forte e rápido. No solo a criatura inanimada continuava perfeitamente negra.
Nenhum sinal de ferida ou sangue. Só foi possível inferir a existência de
sangue quando percebeu que não era possível ver o canivete. Estava envolto em
algo que o deixava igualmente negro. Um buraco na existência, sem fundo
visível. Só o contorno da lamina era perceptível. Com um movimento rápido
balançou a ponta, que desprendeu gotas do sangue negro no solo seco do degrau.
Desejou jamais ter descido ali. Os respingos no chão começaram a se mover,
tomando a forma de minúsculas aranhas, igualmente negras. Sete, no total.
Valdomiro entrou em desespero. Jogou a lança para o degrau superior e em seguida
pulou com toda a força, tentando alcançar a quina para subir. Falhou. Àquela
altura as aranhas haviam caminhado vagarosamente pelo chão, uma na direção da
outra, fundindo-se ao se tocar e dando origem a um corpo maior. Uma única
aranha negra com o tamanho do polegar de Valdomiro. Simultaneamente, os
respingos do sangue que caíram no patamar superior quando a lança foi jogada
começaram a realizar a mesma operação, formando uma segunda aranha a poucos
metros de Marcus. Desesperado, mas sem esquecer do amigo, Marcus se deitou
sobre o patamar, estendendo os mãos para baixo, as quais foram alcançadas pelo
segundo salto de Valdomiro, que foi imediatamente içado. A aranha começou a
subir pela parede rochosa com a mesma facilidade de qualquer outra aranha,
enquanto a segunda caminhava em direção do calcanhar de Marcus. Os dois
correram para a estrada sem apanhar a lança. Olharam pra trás e viram uma
aranha de uns dez centímetros de envergadura alcançar a borda oeste,
provavelmente nascida da reunião das duas aranhas de outrora. Correram para o
Leste, rumo à água. A aranha parecia enxergar seu desespero e se movia em linha
reta na direção dos dois, já com a água pela cintura. Quando sua primeira pata
tocou a água algo pareceu feri-la, pois recuou rapidamente. Ficou alguns
instantes parada, rente ao limite entre a água e a rocha. Seus olhos, mesmo
invisíveis, exalavam ódio. Apesar de pequena, a assustadora criatura exprimiu
um urro tão profundo quanto o da noite anterior! Marcus caiu de joelhos, com a
água quase no queixo! As pernas de Valdomiro também se abalaram, mas ele
conseguiu manter o equilíbrio. Então os contornos negros moveram-se novamente e,
dando as constar aos homens embebidos em água e suor, retornou para a borda
oeste, desaparecendo no precipício.
Continua em #Vazio - A Fome das Sombras (23)
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