quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Conto - O Sábio e o Homem do Inferno

Muito tempo atrás havia um pequeno vilarejo que prosperava ao redor de um austero palácio. Ali vivia uma família de origem desconhecida; um casal de andarilhos que pediu abrigo quando a mulher estava prestes a dar a luz. Os moradores, muito solícitos, acolheram a família e cuidaram da mulher como puderam, mas o parto foi extremamente difícil e a criança não resistiu.

Em gratidão, os dois decidiram que estava terminado o tempo das caminhadas; se instalaram no local e trabalharam arduamente pela felicidade daquela comunidade. A comunidade cresceu e o casebre construído com colaboração de todos se transformou em palácio. Demorou muito tempo até que a mulher engravidasse novamente. Sentiam que os deuses decidiram dar uma segunda chance. Alguns acreditavam que era o mesmo menino que havia decidido que agora havia chegado o tempo propício para seu nascimento.
O menino cresceu cercado pelo afeto de seus pais e dos moradores do local, tendo dificuldade em diferenciar a pequena família que morava sob o mesmo teto e a grande família que se espalhava pelos arredores. Pouco antes da “concessão das armas” ¹, o menino, pensativo, se aproximou do pai e perguntou:
- Pai, o que é o “homem do inferno”?
- Eu não sei muito sobre isto, meu pequeno. Sei das histórias que contam nas noites de fogueira.
- Mas o que você sabe?
- Dizem que há muito tempo, antes mesmo de sua mãe e eu chegarmos a este lugar, existia um jovem sem parentes e sem amigos. Os pais haviam morrido de doença um pouco antes de sua “concessão das armas” e nada podia consolá-lo. A tristeza ardia cada vez mais profundamente em seu coração, tornando-se tão forte que virara uma necessidade de sofrer ainda mais e de fazer sofrer. Ele pegava cacos dos vasos para ferir a si mesmo e há qualquer um que se aproximasse. Sua boca se abria apenas para aspergir ofensas. Não existia mais gratidão, respeito ou mesmo civilidade.
- E o que aconteceu com ele?
- Dizem que as conversas alegres das pessoas e as risadas das crianças feriam seus ouvidos como pregos. Não suportando mais a dor retirou-se para as matas. Encontrou uma velha cabana abandonada a oeste e fica lá, ainda ferindo o próprio corpo e, ao mesmo tempo, sem coragem para dar fim à própria existência.
- É um inferno em Kadar ².
- Sim, meu pequeno. Por isto o chamam de “homem do inferno”.
Na manhã seguinte o menino se levantou muito cedo, quando o céu estava vermelho mas ainda não havia Sol, passou pelos corredores sem fazer barulho, cruzou os casebres do vilarejo e entrou na floresta úmida, seguindo para o Oeste. O pai, ainda deitado, ouviu os passos e a porta. Sorriu.
Notas:
¹ A infância era separada da vida adulta por um ritual de passagem chamado “concessão das armas”, ocasião na qual os jovens, independente do sexo, empunhavam armas em uma disputa esportiva que representava a luta contra os demônios pela defesa da comunidade. Antes da concessão os jovens não tinham direito de tocar em armas, nem mesmo de brinquedo. Após a concessão passavam a ser considerados adultos e tinham o direito de pendurar suas armas ao lado das de seus familiares no ponto mais importante de cada casa.

² Naquela época acreditavam que existiam quinze mundos, sendo sete mundos celestiais acima do nosso e sete mundos infernais abaixo do nosso. “Kadar” era a palavra para designar este nosso mundo, e era formada pela união de “Kad”, que significava “oito” e “dar”, que significava “meio” ou “central”.

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