Muito tempo atrás havia um
pequeno vilarejo que prosperava ao redor de um austero palácio. Ali vivia uma
família de origem desconhecida; um casal de andarilhos que pediu abrigo quando
a mulher estava prestes a dar a luz. Os moradores, muito solícitos, acolheram a
família e cuidaram da mulher como puderam, mas o parto foi extremamente difícil
e a criança não resistiu.
Em gratidão, os dois decidiram que estava terminado o
tempo das caminhadas; se instalaram no local e trabalharam arduamente pela
felicidade daquela comunidade. A comunidade cresceu e o casebre construído com
colaboração de todos se transformou em palácio. Demorou muito tempo até que a
mulher engravidasse novamente. Sentiam que os deuses decidiram dar uma segunda
chance. Alguns acreditavam que era o mesmo menino que havia decidido que agora
havia chegado o tempo propício para seu nascimento.
O menino cresceu cercado
pelo afeto de seus pais e dos moradores do local, tendo dificuldade em diferenciar
a pequena família que morava sob o mesmo teto e a grande família que se
espalhava pelos arredores. Pouco antes da “concessão das armas” ¹, o menino,
pensativo, se aproximou do pai e perguntou:
- Pai, o que é o “homem do
inferno”?
- Eu não sei muito sobre isto,
meu pequeno. Sei das histórias que contam nas noites de fogueira.
- Mas o que você sabe?
- Dizem que há muito tempo,
antes mesmo de sua mãe e eu chegarmos a este lugar, existia um jovem sem
parentes e sem amigos. Os pais haviam morrido de doença um pouco antes de sua “concessão
das armas” e nada podia consolá-lo. A tristeza ardia cada vez mais
profundamente em seu coração, tornando-se tão forte que virara uma necessidade
de sofrer ainda mais e de fazer sofrer. Ele pegava cacos dos vasos para ferir a
si mesmo e há qualquer um que se aproximasse. Sua boca se abria apenas para
aspergir ofensas. Não existia mais gratidão, respeito ou mesmo civilidade.
- E o que aconteceu com ele?
- Dizem que as conversas
alegres das pessoas e as risadas das crianças feriam seus ouvidos como pregos.
Não suportando mais a dor retirou-se para as matas. Encontrou uma velha cabana
abandonada a oeste e fica lá, ainda ferindo o próprio corpo e, ao mesmo tempo,
sem coragem para dar fim à própria existência.
- É um inferno em Kadar ².
- Sim, meu pequeno. Por isto
o chamam de “homem do inferno”.
Na manhã seguinte o menino
se levantou muito cedo, quando o céu estava vermelho mas ainda não havia Sol,
passou pelos corredores sem fazer barulho, cruzou os casebres do vilarejo e
entrou na floresta úmida, seguindo para o Oeste. O pai, ainda deitado, ouviu os
passos e a porta. Sorriu.
Continua em O Sábio e o Homem do Inferno – Parte 2
Notas:
¹ A infância era separada da
vida adulta por um ritual de passagem chamado “concessão das armas”, ocasião na
qual os jovens, independente do sexo, empunhavam armas em uma disputa esportiva
que representava a luta contra os demônios pela defesa da comunidade. Antes da
concessão os jovens não tinham direito de tocar em armas, nem mesmo de
brinquedo. Após a concessão passavam a ser considerados adultos e tinham o
direito de pendurar suas armas ao lado das de seus familiares no ponto mais
importante de cada casa.
² Naquela época acreditavam
que existiam quinze mundos, sendo sete mundos celestiais acima do nosso e sete
mundos infernais abaixo do nosso. “Kadar” era a palavra para designar este
nosso mundo, e era formada pela união de “Kad”, que significava “oito” e “dar”,
que significava “meio” ou “central”.
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