sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Conto - Sombras - Parte 2

O contraste entre o colorido vivo da bola e os tons pastéis da construção atraiu seu olhar para a casa em frente. A bola colorida aguardava imóvel, desafiando o homem desesperado que entrou na casa enfurecido e aterrorizado. Desejava que tudo fosse uma brincadeira. Temia imensamente que fosse outra coisa. O primeiro cômodo era uma grande sala com uma escada lateral, totalmente desprovida de móveis, portanto, sem um ponto para se esconder.

Lançou-se no corredor sem notar a bola colorida repousando no terceiro degrau da escada deixada para trás. Passou por um banheiro sem porta e atingiu a cozinha. O último vestígio de um móvel eram os restos de um armário esfarelado e esmagado pela pedra da pia que desprendera-se da parede há tempos. Olhou atrás da pedra, mas não havia espaço para uma criança. Não viu a bola colorida junto à parede oposta à velha pia. A porta de ferro enferrujado não ofereceu resistência, dando a impressão de que apesar da deterioração era usada com frequência.
Atrás dela um estreito quintal repleto de mato alto que brotava do complexo sistema de fissuras desenhadas no chão pelo tempo. Camundongos correram para a pilha de entulho. Esta apresentava um volume considerável, mas o muro era muito mais alto, evidência de uma época na qual o bairro não era tão tranquilo. Apesar do entulho seria impossível uma criança pular aquele muro sozinha. Mesmo um adulto encontraria dificuldade, ainda que sem uma criança para arrastar. Voltou pra dentro sem notar a bola colorida junto ao entulho.
Dentro da casa correu e subiu as escadas sem tropeçar na bola colorida que já não estava lá. No alto um corredor levava a três cômodos desprovidos de porta. Volveu-se à direita rumo ao que seria o quarto da frente. Estacou no chão quando uma sensação perturbadora percorreu se corpo. Uma presença (ou ausência) o observava.  Virou assustado. Uma bola colorida repousava serenamente sob o batente quase totalmente devorado. Correu para apreender o nada que habitava o lugar. Papelão engordurado e empoeirado evidenciava a ausência prolongada de algum invasor antigo que ali dormira. Pratos e panelas antigas sugeriam que viveu de doações (ou furtos), mas num tempo muito anterior às sacolas plásticas e marmitex. Nas paredes úmidas vestígios de carvão e telha registravam em letras doentias aquilo que deve ter sido um mantra para o escritor: "Por que? Por que? Por que? ..."
Em algum arquivo policial registrou-se detalhadamente o relato do pai, as buscas e investigações infrutíferas. As evidências de que o pai era a primeira pessoa a entrar no local há anos. O fato do pai não ter percebido a existência de um sótão e o vazio do mesmo. Nenhuma criança da região reclamara do desaparecimento de uma bola. Nenhuma bola foi encontrada na casa.
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