O contraste entre o colorido
vivo da bola e os tons pastéis da construção atraiu seu olhar para a casa em
frente. A bola colorida aguardava imóvel, desafiando o homem desesperado que entrou
na casa enfurecido e aterrorizado. Desejava que tudo fosse uma brincadeira.
Temia imensamente que fosse outra coisa. O primeiro cômodo era uma grande sala
com uma escada lateral, totalmente desprovida de móveis, portanto, sem um ponto
para se esconder.
Lançou-se no corredor sem
notar a bola colorida repousando no terceiro degrau da escada deixada para
trás. Passou por um banheiro sem porta e atingiu a cozinha. O último vestígio
de um móvel eram os restos de um armário esfarelado e esmagado pela pedra da
pia que desprendera-se da parede há tempos. Olhou atrás da pedra, mas não havia
espaço para uma criança. Não viu a bola colorida junto à parede oposta à velha
pia. A porta de ferro enferrujado não ofereceu resistência, dando a impressão
de que apesar da deterioração era usada com frequência.
Atrás dela um estreito
quintal repleto de mato alto que brotava do complexo sistema de fissuras
desenhadas no chão pelo tempo. Camundongos correram para a pilha de entulho. Esta
apresentava um volume considerável, mas o muro era muito mais alto, evidência de
uma época na qual o bairro não era tão tranquilo. Apesar do entulho seria
impossível uma criança pular aquele muro sozinha. Mesmo um adulto encontraria
dificuldade, ainda que sem uma criança para arrastar. Voltou pra dentro sem
notar a bola colorida junto ao entulho.
Dentro da casa correu e
subiu as escadas sem tropeçar na bola colorida que já não estava lá. No alto um
corredor levava a três cômodos desprovidos de porta. Volveu-se à direita rumo
ao que seria o quarto da frente. Estacou no chão quando uma sensação
perturbadora percorreu se corpo. Uma presença (ou ausência) o observava. Virou assustado. Uma bola colorida repousava
serenamente sob o batente quase totalmente devorado. Correu para apreender o
nada que habitava o lugar. Papelão engordurado e empoeirado evidenciava a
ausência prolongada de algum invasor antigo que ali dormira. Pratos e panelas
antigas sugeriam que viveu de doações (ou furtos), mas num tempo muito anterior
às sacolas plásticas e marmitex. Nas paredes úmidas vestígios de carvão e telha
registravam em letras doentias aquilo que deve ter sido um mantra para o
escritor: "Por que? Por que? Por que? ..."
Em algum arquivo policial
registrou-se detalhadamente o relato do pai, as buscas e investigações
infrutíferas. As evidências de que o pai era a primeira pessoa a entrar no
local há anos. O fato do pai não ter percebido a existência de um sótão e o
vazio do mesmo. Nenhuma criança da região reclamara do desaparecimento de uma
bola. Nenhuma bola foi encontrada na casa.
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