sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Conto - Sombras

Sombras ocultas entre sombras. Não se trata de redundância; havia ali mais (ou menos) que sombras comuns. Quem já mergulhou vidro transparente em água sabe do que estou falando. O vidro envolto em água desaparece, mas não se torna água, ainda é sólido, ainda quebra, ainda fere. De qualquer modo há mais (ou menos) que água.
Ninguém conhecia a história daquela casa. Se houvera quem soubesse, escolheu calar-se, pois há histórias que não devem ser contadas. O que se pode dizer é que não havia moradores, nem móveis, nem placa de “vende-se” ou “mantenha distância”. Quem dera houvesse. Os moradores da região mantinham distância instintivamente, quiçá tradicionalmente. Mas esta não é uma história sobre os moradores da região.
Havia quem dissesse sentir-se observado. Alguma presença (ou ausência) entre as sombras nas janelas. Nada muito concreto. Este tipo de relato tornou-se progressivamente menos frequente conforme os moradores da região adquiram o hábito quase instintivo de afastar-se da casa sem placa de “mantenha distância”.
Numa terça-feira qualquer o caminhão de mudança chegou sem alarde. Acompanhava-o um carro popular ocupado por um jovem pai ao volante e uma linda menina no banco traseiro. A região era extremamente tranquila, daí a escolha como nova moradia. A mãe não conseguiu folga para acompanhá-los e a companhia de mudança só teria um final de semana disponível dentro de seis meses. A menina brincava com uma bola no gramado frontal enquanto o pai tentava orientar os carregadores acerca dos pontos nos quais descarregar ou montar cada móvel. Entre idas e vindas espiava a menina, devidamente orientada a não ir para a rua. "De onde saiu aquela bola?" Tinha quase certeza de que não estava lá quando chegaram e não via outra criança que a pudesse ter trazido.
- Onde ponho isso doutor?
Virou-se quase assustado. Em instantes apontou um canto para que se colocasse a caixa na qual estava escrito "livros". Tornou a olhar pela janela. Nada! A Jane da sala era grande, dando vista para toda a área da frente da casa. Correu para fora instintivamente. Contornou o carro, olhou dentro do baú e embaixo do caminhão. "Cadê você? Cadê você? Cadê você?". Correu até a calçada; nada em nenhuma direção.

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