Sombras ocultas entre
sombras. Não se trata de redundância; havia ali mais (ou menos) que
sombras comuns. Quem já mergulhou vidro transparente em água sabe
do que estou falando. O vidro envolto em água desaparece, mas não
se torna água, ainda é sólido, ainda quebra, ainda fere. De
qualquer modo há mais (ou menos) que água.
Ninguém conhecia a
história daquela casa. Se houvera quem soubesse, escolheu calar-se,
pois há histórias que não devem ser contadas. O que se pode dizer
é que não havia moradores, nem móveis, nem placa de “vende-se”
ou “mantenha distância”. Quem dera houvesse. Os moradores da
região mantinham distância instintivamente, quiçá
tradicionalmente. Mas esta não é uma história sobre os moradores
da região.
Havia quem dissesse
sentir-se observado. Alguma presença (ou ausência) entre as sombras
nas janelas. Nada muito concreto. Este tipo de relato tornou-se
progressivamente menos frequente conforme os moradores da região
adquiram o hábito quase instintivo de afastar-se da casa sem placa
de “mantenha distância”.
Numa terça-feira
qualquer o caminhão de mudança chegou sem alarde. Acompanhava-o um
carro popular ocupado por um jovem pai ao volante e uma linda menina
no banco traseiro. A região era extremamente tranquila, daí a
escolha como nova moradia. A mãe não conseguiu folga para
acompanhá-los e a companhia de mudança só teria um final de semana
disponível dentro de seis meses. A menina brincava com uma bola no
gramado frontal enquanto o pai tentava orientar os carregadores
acerca dos pontos nos quais descarregar ou montar cada móvel. Entre
idas e vindas espiava a menina, devidamente orientada a não ir para
a rua. "De onde saiu aquela bola?" Tinha quase certeza de
que não estava lá quando chegaram e não via outra criança que a
pudesse ter trazido.
- Onde ponho isso doutor?
Virou-se quase assustado.
Em instantes apontou um canto para que se colocasse a caixa na qual
estava escrito "livros". Tornou a olhar pela janela. Nada!
A Jane da sala era grande, dando vista para toda a área da frente da
casa. Correu para fora instintivamente. Contornou o carro, olhou
dentro do baú e embaixo do caminhão. "Cadê você? Cadê você?
Cadê você?". Correu até a calçada; nada em nenhuma direção.
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