sexta-feira, 26 de novembro de 2021

#Verborragia: Intolerância

      Nesta semana (hoje é 26/11/2021) decidi forçar-me a escrever, mesmo quando não inspirado, recorrendo a palavras aleatórias da Srta. "OK Google" (assistente). Comecei ontem no "Outros Diálogos" (Texto "Inclusão") e hoje pensei "Por que não também no Novos Escritos?". Vamos lá. Deseje-me sorte:

      Em uma fria e nublada manhã de primavera (e que primavera invernal havia sido aquela!) Marcus, que não era negro, saiu para caminhar por seu bairro, que não era pobre. Era seu dia de folga, mais que merecido, pois não era mulher. Passando em frente a uma paróquia não fez o sinal de cruz nem qualquer outra reverência; não era católico, "graças a Deus!".

      Alguns quarteirões adiante um mendigo indigno maculava a calçada de sua congregação. "Bom mesmo era nos templos bíblicos"; era tarefa dos próprios leprosos afastarem-se, além de alertas as pessoas de bem sobre sua presença gritando "Impuro! Impuro!" de longe. 

      Marcus voltou pra casa pensativo. Ansiava mais que tudo por um evento narrado pelo pastor tempos atrás, "certamente serei arrebatado!", pensava enquanto se envolvia em gratidão e ansiedade.

      Marcus era uma pessoa boa: antes de ser abençoado com o sucesso profissional dava lugar aos idosos no ônibus, pedia a benção à mãe (não sem algum incômodo. Parecia coisa católica, mas que mal poderia ter?), nunca brigou nem bebeu, abominava jogar comida fora, etc.

      Naquele dia Marcus não morreu. Não foi pro céu ser julgado, não foi absolvido em consideração aos bons atos, tampouco condenado pelas pequenas intolerâncias que lhe escorriam do olhar em momentos de desaprovação quanto à escolha recente, ocorrida em seu trabalho, de promoção de Joana, negra e espírita, para cargo desejado por ele há tempos.

      Nada de reviravolta por aqui, nem importante lição moral no final da história, seja para Marcus, seja para ti.

      Noutro ponto da cidade um homem muito velho, negro, fumava cigarro de palha e falava de forma incomum, não que contivesse em si a visita de personalidade alheia, apenas por ter origem muito humilde e a ausência de educação formal. Era chamado de Pedrinho, embora fosse muito alto e forte. "Pedrinho" para todos, "painho" para Joana, tocou o ombro da moça e disse "Deus ti bençoi!". 

      A moça de vida sempre sofrida engasgou com as lágrimas antes de conseguir responder, "Minha benção é você painho!", saindo para trabalhar. No caminho parou na igreja, ajoelhou ao entrar, fez o sinal da cruz diante de São Pedro e agradeceu pela vida de Marcus, quem lhe ensinara tanto em sua vida profissional, tornando possível tantas conquistas e felicidade.

      Todas as manhãs Pedrinho tomava meio copo de café com leite sem açúcar e comia meio pão com manteiga. Acondicionava o resto numa lancheira guardada desde a infância da filha. Sua mente simples não entendia que o tempo da fome havia acabado. Não entendia que podia tomar um café completo e ainda assim levar consigo outro café completo. Não queria dar gastos à menina. Caminhava pelo bairro até a "casa" de João, amigo de infância, negro, pobre, atualmente residente da calçada do templo evangélico da cidade, fundos. Sentava ao lado do amigo, abria a lancheira, entregava-lhe a meia refeição. "Deus te abençoe velho amigo!". João falava bem, cresceu vizinho de Pedrinho, periferia da cidade, mas ficou na escola mais tempo. Pedrinho saiu muito cedo para ajudar a mãe, solteira, a alimentar a casa e três irmão. João, filho único, pai pastor, estudou até o final do ensino médio, "colegial" naquela época. Brigou com o pai, rompeu com a fé, bebeu demais, amou errado, perdeu a vida antes de começá-la. Sobrevivia.

      Anexo ao local de culto havia um alojamento. No alojamento uma janela com belas  cortinas brancas. Pela cortina Paulo, pastor de renome, espiava a calçada e murmurava "Essa raça está se multiplicando! Basta! A casa do senhor merece respeito!". Ligou para a polícia. Pedia ordem.

      Vitor tinha dois metros de altura e ninguém duvidava que teria o mesmo de largura. No corpo inteiro menos gordura que uma fatia de peito de peru defumado. Parecia uma montanha, mas o apelido na academia (tanto a de malhar quanto a da polícia) era "Avalanche", pois no ringue (lutava Jiu-jitsu no tempo livre) era uma máquina de destruição. Carlos o chamava de "Flor", enquanto preparava o café da manhã do marido. Os dois trabalhavam muito e alternavam o preparo das refeições, cada dia cabendo a um.

      No semi-ensolarado final de manhã daquela estranha primavera Vitor recebeu o chamado da central e foi ao templo. Sua cara fechada era aterrorizante. A velocidade obtida sem esforços com seus passos largos associada ao desaparecimento do sol, tapado pela sua presença, justificava o apelido de "Avalanche". O coração de João quase saiu da boca. Vitor colocou o joelho direito no chão e com voz de trovão emitiu seu mais cortes "Sua benção, Seu Pedrinho!".

      "Deus ti bençoi!", respondeu o amável ancião. "Quer me matar de susto, Vitinho?", protestou João.

      "Tenho que trabalhar, seu João. E o senhor não pode ficar aqui!".

      "Quer que eu faça o quê?"

      Vitor não respondeu, fez um movimento com os braços na direção de João -o letrado homem sem lar, nem trabalho, nem dedos nos pés, muito menos sapatos, rico em feridas pelo corpo- mas se reteve uns instantes, como que pedindo permissão. João balançou a cabeça positivamente, foi pego no colo e gentilmente levado até a viatura. Pedrinho o visita no albergue mas não leva mais meio café. João ensina os novatos a ler e matemática.

      Dias depois Marcus não estava de folga. Voltando do trabalho foi direto ao culto. Pastor Paulo, emocionado, narrava ao público que havia visto o Cristo. Confessou que foi intolerante com o próximo e e foi admoestado por Jesus, que carregou pessoalmente um mendigo no colo enquanto ele mesmo se desfazia em vergonha. Seu Pedrinho, que nunca perdia o culto, achou a história familiar, mas devia ser coincidência. Não pode falar pra filha, que não pisava na igreja do pai. Marcus louvava a Deus pelo reconhecimento recebido através da Dra. Joana na frente do escritório inteiro.

      Chovia demais. Primavera muito confusa.

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