domingo, 8 de maio de 2022

#Verborragia: Liberdade

 Para entender o motivo da Verborragia clique aqui (Por favor Participe! É grátis e fará um [pseudo]autor muito feliz!).  A palavra desta sexta é "Liberdade". Desculpe pelo atraso.

"Anda logo. Estamos atrasados!"

Amanda voltou para a Terra. Onde esteve?

Quem olhasse de fora veria uma moça perdida, parada na calçada, examinando uma motocicleta semi-barata através da limpíssima vidraçaria de uma loja de usados. Uma destas marcas secundárias, com aspecto de estradeira e motor de mobilete.

A garoa fina era consistente e já formava estreitas cascatas no rosto e na mochila. Guarda-chuva guardado.

Veria também Jeferson insistir:

"Anda meu. Travou aí? É pra dar tranco?"

Onde Amanda esteve?

Um imperceptível sacudir da cabeça foi realizado para desfazer alguma imagem residual na mente, como quem agita a mão no ar para dispersar fumaça.

Seguiu o amigo com passos apressados.

"Se não fosse a pé já estaria lá!", pensou consigo. Depois notou que o pensamento não fazia sentido. Não queria ir, fosse atrasada, fosse mais cedo. Espremeu a alma um pouco mais e percebeu que não era nem a moto que desejava; era outra coisa, algo que não saiba nomear.

"Por que você nunca usa guarda-Chuva?"

"Não quero. Não gosto. Gosto de sentir a chuva."

"Mas está frio!"

"Gosto de sentir o frio."

"Vai ficar molhada a manhã inteira. As pessoas vão reparar. Vão comentar."

"Não me importo."

Amanda e Jeferson eram colegas de trabalho. O destino era uma loja de roupas sociais no centro da cidade. Três quarteirões a pé no vento frio e na chuva separavam o local de labuta do ponto de ônibus no qual desembarcavam.

Amanda não gostava do lugar, dos colegas, dos clientes.

"Isso não é uma gravata, parceiro. É um grilhão!", sussurrava o coração enquanto a boca dizia "Ficou linda. Quer aproveitar e ver as camisas?"

Notou uma incidência de "Só estou olhando. Obrigado!" maior que o normal. Talvez Jeferson tivesse razão. Talvez as roupas úmidas incomodassem a clientela, sempre tão superficial.

"O Zé tá te chamando!", alertou Camila (ou Cleide. Sei lá).

Na porta de madeira uma plaquinha tinha "Gerente: José Antônio Silva" em arial de cor branca em um fundo azul claro. Se fosse livre das exigências do "Zé" seria helvética preta em fundo branco. Na verdade nem isso. Nunca existiu uma "sala do gerente" e uma placa na porta até a chegada (e exigência) do Zé.

"Você está toda molhada. Como pode trabalhar assim? Temos que respeitar nossos clientes."

Ela não conseguia responder. Não por medo, raiva, respeito. Apenas não entendida como ter caminhado na garoa poderia ser desrespeito a alguém.

"Você está me ouvindo? Onde você está?"

Ele falava com ela olhando em seus olhos. Ela olhava o cinza das nuvens pela janela, pouca coisa à esquerda dele em sua perspectiva. Não era chato, feio ou triste. Era lindo. Amava as nuvens, a chuva, o frio; amava, sobretudo, o vento.

"Você consegue entender a importância dessa conversa? Ela pode decidir se você continua trabalhando aqui."

Ela entendeu a ameaça, mas o fascínio pelo que a janela exibia impossibilitou reação. O que ela desejava estava lá, não aqui.

"Lamento Amanda. Você está despedida. Pegue isso e leve ao RH."

Os papéis já estavam preenchidos. Ela pegou sem protestar. Um quê de indiferença fundido a outro quê de anestesia. Ela realmente não estava completamente ali. Onde esteve?

A demissão de Amanda não foi comunicada aos colegas. Ela mesma partiu sem se despedir. No ponto de ónibus Jeferson se perguntava "Onde está?"

Amanda voltou à loja, comprou a moto, olhou o horizonte. Era outono, ou seja, o céu estava frequentemente nublado. Os dias alternavam entre muito frios e semi-quentes.

Não estava atrasada para o emprego perdido. Talvez atrasada para a busca de um novo. No momento não importava.

"Onde estou?"

A carteira de habilitação era demasiadamente antiga. A experiência, perdida. "Meu Deus. O que estou fazendo? Não sei nem se lembro."

Deu a partida e partiu. Onde esteve? Onde iria?

Só seguiu.

Na mente a memória da mãe falando sobre o frio.

"Não quero saber nem mesmo onde estarei

Não quero a blusa

Quero o frio cortando a pele e rasgando a alma

Não estamos aqui para amortecer a existência.

Estamos para vivê-la inteira."

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