sexta-feira, 7 de abril de 2023

#Verborragia: Meias - 2

A palavra de hoje é fruto de um conflito: quando a palavra "Meias" foi sorteada a primeira reação dos meus dedos (o texto sai como decide sair; não faço planos) foi despejar meia dúzia de rimas aleatórias sobre o papel (na verdade, no celular); de alguma forma me indispus com aquelas rimas, como se fossem artificiais, então abandonei o texto e me forcei em uma prosa; ocorre que a deliberação pela prosa foi em si uma adulteração da naturalidade que pretendo para os textos, donde o retorno ao verso e a publicação do texto da semana passada (Meias -1).

Em contrapartida, quando fui sortear a palavra para o conto desta sexta me vi impedido de fazê-lo, incomodado pela lembrança do meio texto deixado para trás. Retomo-o agora. ________________________________________________________________________

"Chega de meias verdades!" Decretou Samara em tom de "gota d'água".

"Nenhuma verdade é meia!", foi a réplica pouco disposta de Mauro.

Ela apertou os lábios com força, tentando conter uma inclinação ao riso. Ele percebeu e procurou se segurar também. Ela insistiu:

"Responda logo!"

"Puxa vida. Se eu soubesse eu diria. Que motivo tenho para esconder uma coisa destas?"

"É isso que vou descobrir !"

"Meu Deus do céu, Amor! Veja o que você está dizendo. Por que eu mexeria numa coisa destas?"

"Me diz você!"

Ele apenas ficou calado, optando por se retirar do ambiente.

Dias depois, assunto encerrado, outras brigas sobre outros temas iniciadas e vencidas, uma despedida se deu sob a luz de uma lua crescente (leia Meias - 1 ).

A distância é curiosa: como um sol poente, problemas e queixas minguam até tornarem-se quase impossíveis de lembrar; motivos de sorriso, boas lembranças, virtudes, destacam-se como a lua, invisíveis até momentos atrás.

O tempo é interessante: no início esqueceram-se do que os separou; não tendo sucumbido à inclinação de novas tentativas, perderam da lembrança até o que os havia reunido.

Incontáveis dias e luas depois já eram quase estranhos; foi aí que as estrelas decidiram mexer na rota.

Certa noite, retornando de um encontro com amigos, Mauro notou uma silhueta familiar no vagão em que estava. Como vira por visão periférica, optou por não mirar diretamente, receando não ser ninguém conhecido e evitando constranger uma estranha. Chegada sua estação, enquanto movia-se até a porta, sentiu tocarem seu antebraço.

"Vai fingir que não me viu?"

Era Samara, sorrindo evidentemente satisfeita.

"Meu Deus do céu!", interpelou Mauro, enquanto soava o alerta de que as portas fechariam. Irrefletidamente saltou para dentro, procurando prolongar a conversa.

"Nossa. Há quanto tempo! Como você está?"

"Bem. Muito bem. Levando a vida. E você?"

"Bem também. Correndo. E agora perdi minha estação."

Riram.

"Vai lá seu bobo. Está tarde. Outro dia a gente conversa."

"Está bem. Legal te ver."

Enquanto ele esperava a próxima estação, já em silêncio, sem certeza do que dizer, a moça interveio:

"Não está esquecendo nada?"

"Eita! Desculpe. Boa noite!"

Ela riu.

"Não, seu bobo. Como é que a gente conversa outro dia, se não temos nossos contatos?"

Trocaram telefones, mandaram um "Oi" por um aplicativo de conversa, apenas para confirmar se registraram corretamente e Mauro partiu.

Quem partiu exatamente? Na perspectiva de cada um partia o outro. Cada um ficara. Partia o outro. Ele ficou na estação, ela no vagão.

No dia seguinte ele recordou do encontro e do número anotado. Não tinha qualquer ansiedade, curiosidade ou saudade. Nenhum motivo particular para escrever, salvo o receio de parecer deselegante não travando a comunicação que se propusera a travar.

"Olá. Como vai? Foi bacana te ver. Tenha um ótimo dia."

Pronto. Ela devolveria o "Bom dia" e bora seguir a vida.

O dia correu tranquilo. À noite a resposta.

"Olá. Aqui tudo bem! E aí? Espero que tenha tido um bom dia. O meu foi muito bom. Obrigada."

Caso encerrado. Os dias seguiram tranquilos. Não pensava no encontro. As mensagens foram empurradas para uma região secundária do aplicativo por conversas com outras pessoas.

Três semanas depois, no meio de uma quinta feira, o som das notificações trouxe a mensagem:

"Oi sumido. Como vai? Você se lembra do Alex? Estamos namorando. Comentei que te encontrei e ele pediu para te chamar para o 'niver' dele. Chamamos uns poucos amigos. Você conhece quase todo mundo. Se puder. Cola lá no Bar do Waltão amanhã à noite."

"Grande Alex! Como ousa perguntar se eu lembro. Rs. Claro que vou. Talvez amanhã eu saia um pouco mais tarde do trabalho, mas corro pra lá assim que possível. Obrigado!"

Ela respondeu com uma imagem que representava um abraço e uma série de corações.

"O por do sol é a meia noite da lua crescente!", pensou enquanto saía do trabalho às 17:37, coisa raríssima às sextas. O horizonte dourado pelo sol poente e a meia lua viva exatamente sobre sua cabeça.

Caminhou até a estação do metrô pensando sobre o que faria. Era cedo demais e sequer havia perguntado o horário que as pessoas combinaram chegar. Decidiu ir aquele horário mesmo. Se chegasse mais cedo "começaria os trabalhos" em nome de todos e à saúde do Alex. A linha de metrô alternativa entre trechos subterrâneos e outros na superfície. Quando fora da terra, ele se contorcia grudado ao vidro tentando localizar o luar.

"É uma coisa muito linda, né?"

Falou uma moça adjacente. Ele riu constrangido, imaginando o quão idiota parecera sua imagem naquela situação para aquela pessoa. Tentou seguir a onda.

"Sim. Muito. Particularmente hoje."

"O por do sol é a meia noite da lua crescente", disse ela.

Ele ficou completamente desconsertado.

"Desculpe. O que disse?"

"Na lua crescente. Ela fica no meio do céu quando o sol está se ponto."

"SIM! SIM", ele respondeu extasiado. "Foi exatamente o que senti quando saí do trabalho. Exatamente o que pensei."

Ela riu. "Desculpe. Mas isso é específico demais para duas pessoas pensarem ao mesmo tempo."

"Mas foi. Palavra!"

"Ok. Vou confiar em você. Acho que uma pessoa que olha a lua merece um voto de confiança."

Ele riu, levemente encabulado.

"A propósito; me chamo Amanda."

"Muito prazer Amanda. Eu sou Mauro." Subitamente estimulado pela curiosidade sobre a pessoa, catalisada pela frase inexplicavelmente imaginada pelos dois, incluiu "e aí? O que mais você me deixa saber sobre você além do seu gosto pela Lua?"

Agora quem se encabulou foi ela.

"É. Puxa vida. Não estava preparada para uma entrevista."

"Desculpe. Não quis ser invasivo ou impertinente. Só não sabia como seguir a conversa."

"E por que você queria seguir a conversa?"

"Puxa vida. Não sei. A coisa da lua."

"A meia-noite?"

"É!"

"Como vou ter certeza que você não está simplesmente imitando a minha frase, para puxar assunto?"

"Você já me deu o voto de confiança sobre isso."

"Verdade. Desculpe."

"Supondo que nós dois tenhamos pensado, de fato, a mesma frase e supondo que não a tenhamos lido por aí, em um outdoor ou mídia social, sem ter percebido. O que significa tudo isso?"

"Dois estranhos pensarem a mesma coisa bem no dia que se conheceram?"

"É!"

"Que a Lua gosta de pregar peças."

"Como isso?"

"A Lua assiste todos nós, o tempo todo, embora nem todos nós a assistamos. Do mesmo modo que aqui há duas pessoas se conhecendo, pode haver um relacionamento terminando sob a luz do luar. Acontece o tempo todo. Talvez a Lua tenha decido, dessa vez, assistir uma história de gente que a assista."

"Há uma história começando aqui?'

"Claro. Há histórias começando o tempo todo. Pode ser a história de duas pessoas que nunca mais vão conversar, a história de dois grandes amigos, ou qualquer outra coisa. Não é menos história por ser muito curta, supondo que seja curta. Essa é a peça: A Lua só promoveu o começo."

"Puxa vida. Eu desço na próxima. Posso pedir seu telefone."

"Olha aí. Outra peça da Lua. Também desço na próxima."

Trocaram telefones mesmo assim, supondo que seus caminhos divergiriam logo em seguida.

"Você está me seguindo?"

"Puxa vida. Eu falei da estação primeiro."

"Eu sei. Estou brincando."

Passando as catracas viraram na mesma direção.

"Parece que teremos um passeio sub o luar."

"Gosto de passeios e gosto do luar. Deu certinho."

Ambos riram.

"O que mais você gosta?" perguntou a moça, inconformada por se sentir tão à vontade.

"Aaaaa! Gosto de jazz!!! Tem um barzinho logo ali com música ao vivo!"

"O Waltão!"

"Você conhece?"

"Sim. Estou indo pra lá. É aniversário de um amigo."

"O ALEX?"

"SIM! Não é possível que você o conheça!"

"Estou indo lá pra isso."

Os dois riram, inconformados.

"Acho que chegamos muito cedo!", disse ela à porta do bar, olhando a Lua uma última vez.

"Quem bom!", foi a resposta definitiva do sujeito vendo o brilho do luar nos olhos castanhos que acabara de conhecer.

Descrever a noite seria meia verdade, pois cada um lembraria de uma parte, nunca exata. Tentaram muita vezes. Sempre terminavam em contradições e risadas.

Ainda naquela noite viriam a notar e explorar a ideia de que o por da Lua crescente é a meia-noite do Sol. Ririam bastante, não só da constatação e de sua inutilidade mas, sobretudo, por fazer sentido para ambos.

O fato, aqui, é que entraram juntos no entardecer, no metrô e no bar, tudo à luz encantadora da Lua que se encantou pelos que a observaram.

 Há um quê de "luar" no jazz, não? Algo noturno, mas iluminado; terno, mas não monótono.

Caminharam sob o luar e o resto é jazz.


Para entender o motivo da Verborragia clique aqui (Participe! É grátis e fará um [pseudo]autor muito feliz!)

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