sexta-feira, 22 de junho de 2012

#Vazio - A Fome das Sombras (26)

Olhando para Valdomiro percebeu que seu semblante recuperava a tranquilidade. Olhar fixo no Norte. Sentiu fome, mas preferiu não propor uma nova pescaria até a manhã seguinte, supondo que sobrevivessem àquela noite tão repleta de incógnitas.
Quando a esfera dourada tocou suavemente o limite Oeste do mundo, Marcus despertou de seu transe especulativo. Olhou o poente e ficou imaginando se a luz do Sol teria algum efeito sobre a criatura. Sua ausência durante a tarde poderia ser tomada como evidência positiva. Baseado na hipótese de que o Sol fosse realmente uma fraqueza da criatura, ficou imaginando se já estaria morta ou se, dotada de alguma consciência da própria condição, teria procurado um abrigo. Teria encontrado tal abrigo? Novamente concluiu que em um mundo absurdo como aquele, a ausência de respostas era uma coisa natural. Lembrou-se de Descartes. Rememorou o tal “Cogito, ergo sum” e desejou a capacidade de não mais cogitar. Na ausência de quem atendesse seu desejo, retornou às necessidades imediatas.
- O Sol se põe e nada de nevoeiro. Dormiremos na água?
- Com certeza, Rapaz! Nem gripe nem “peleumonia” me assustam mais que aquela coisa!
Marcus há muito percebera que mesmo sem intimidade com as palavras, Valdomiro não era menos sábio que outros admiráveis homens que havia conhecido em sua vida. Quando já não havia mais disco no céu, apenas ondas de luz avermelhada, aproveitaram aquela penumbra final para escolher um ponto adequado para dormirem. Não mais que vinte centímetros de profundidade; o bastante para cobrir boa parte de seus corpos e mesmo assim manter seus rostos fora d’água. Marcus imaginou que era raso demais e que a Sombra, se assim o desejasse, os alcançaria com facilidade, mas não era capaz de propor solução melhor. Se fossem mais fundo, com certeza não conseguiriam dormir. Apostou no alertar das “emissões de ódio” da criatura, deitou e dormiu rapidamente. Sentia-se boiando em um mar agitado. Corpo com braços abertos e pernas soltas. Não era capaz de se mover. Não podia começar a nadar. Estava à deriva, contando apenas com o empuxo da água para manter seu corpo em posição que ainda lhe permitia respirar. Às vezes uma onda mais forte o mergulhava por inteiro, mas retornava à tona antes de perder completamente o fôlego. Gradualmente a água foi tornando-se leitosa, até ficar completamente branca. Quando as ondas se projetavam sobre ele, não era mais capaz de ver através delas, tendo a água perdido completamente sua transparência. Uma última onda surgiu, mergulhando-o com violência. Sentiu-se desesperado ao perceber que não retornava mais à superfície. No instante derradeiro, tomado por pavor e angustia, retomou o controle dos braços, movimentando-os freneticamente para nadar. Notou alguma mudança na densidade da água no exato momento que levou sua cabeça á tona. Percebeu que com a mão removia para o lado um oceano de lençóis brancos, os quais se encolheram até o tamanho de um único lençol de solteiro. Alvo como apenas os lençóis de hospital e as toalhas de restaurante podem ser. Estava de volta ao seu quarto, iluminado pelo Sol nascente. Sentou-se e respirou profundamente, pois a falta de ar era real. Levantou da cama sem dificuldade e foi até a janela. A vida seguia normalmente na cidade que nunca dormia.

Nenhum comentário:

Postar um comentário