quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Conto - Significado!


Caía vertiginosamente. O movimento de luzes e sombras, imagens disformes de todas as dimensões, atestava a imensa velocidade da queda, ao mesmo tempo que impossibilitava qualquer definição sobre a composição dos arredores. Tudo o que existia era a queda.

Na ausência de paredes, parapeitos, céu, chão, contas e compromissos, perdia progressivamente o contato com o pensamento coerente, tão perfeitamente adaptado à existência concreta. O pensamento inteligente - aquele que conecta as impressões externas às memórias e aos conceitos, ajudando-nos a compreender o mundo exterior ao mesmo tempo que possibilita atuarmos nele – foi perdendo o fôlego, despido que estava de experiências imediatas, concretas e sobretudo sensatas. Nada naquela experiência singular fazia sentido. Nenhuma memória semelhante. Nada a inferir. A única constatação possível, oriunda da visão e do tato, era que caía.
Para trás, ou para cima, corria aquele oceano de percepções nascentes, todas fora do alcance antes que fosse possível qualquer reconhecimento. Com elas, significados por definição, perdia também os significantes. Perdia as palavras. Perdia a Linguagem. O vazio ali só não era pleno em decorrência do atrito com o ar, violento em todo o corpo e ainda mais no ruído que provocava enquanto passava pelos ouvidos. Era indiscutível que caía.
Ali, quando toda a palavra se havia esvaído, com ela foram os juízos, com os juízos os receios, os temores, as fobias, os desesperos, as dúvidas, as incertezas, os fatos, as concretudes, os dogmas, as certezas, as verdades; Ali, quanto toda a palavra se havia esvaído, reduzida toda uma existência passada à simplicidade do ato presente, quando nem mais recordava, nem se preocupava, nem buscava, estendeu a mão para “baixo”. Não sabia se havia um chão se aproximando, ignorava os termos “chão”, “aproximação”, “impacto”, “morte”; ignorava braço e extensão, ignorava seu indicador enquanto fato, apenas o percebia, puro ato, criação livre, divino Michelangelo. Ali, suspenso todo o juízo, tocou uma verdade. Quiçá A Verdade? Tocou-a sem pretensões, sem desejos, sem arrogância.
Ali o fez, puro ato, e do ato retornou. Movimento de luzes e sombras, imagens disformes de todas as dimensões, tudo isto substituído por negro. Atrito com o ar, violento em todo o corpo e ainda mais no ruído que provocava enquanto passava pelos ouvidos, convertido em lençóis, silêncio e colchão. Do ventre do quarto escuro ressurgiam com força toda a sorte de memórias, palavras e conceitos. Ali, ainda com o braço erguido, agora a apontar para as invisíveis manchas de umidade no não tão distante teto, enquanto recuperava tudo aquilo que o tornava “eu”, perdia a verdade que vislumbrara. No desespero para guardar ao menos um fragmento, cercava-a de conceitos, explicações, descrições! Na mesma medida que assim operava, a perdia, enterrada em conceitos, explicações, descrições, nada disso ela mesma. Nada disso verdadeiramente verdadeiro. Significantes. Perdia, ali, deitado com o braço nu estirado para o nada, o único Significado que poderia desejar! *
Nota:
*Escrito ao som de “Machine Head”- Bush e “Roda Viva”, Chico Buarque. Também da chuva!

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