Caía vertiginosamente. O
movimento de luzes e sombras, imagens disformes de todas as dimensões, atestava
a imensa velocidade da queda, ao mesmo tempo que impossibilitava qualquer
definição sobre a composição dos arredores. Tudo o que existia era a queda.
Na ausência de paredes,
parapeitos, céu, chão, contas e compromissos, perdia progressivamente o contato
com o pensamento coerente, tão perfeitamente adaptado à existência concreta. O
pensamento inteligente - aquele que conecta as impressões externas às memórias
e aos conceitos, ajudando-nos a compreender o mundo exterior ao mesmo tempo que
possibilita atuarmos nele – foi perdendo o fôlego, despido que estava de
experiências imediatas, concretas e sobretudo sensatas. Nada naquela experiência
singular fazia sentido. Nenhuma memória semelhante. Nada a inferir. A única
constatação possível, oriunda da visão e do tato, era que caía.
Para trás, ou para cima,
corria aquele oceano de percepções nascentes, todas fora do alcance antes que
fosse possível qualquer reconhecimento. Com elas, significados por definição,
perdia também os significantes. Perdia as palavras. Perdia a Linguagem. O vazio
ali só não era pleno em decorrência do atrito com o ar, violento em todo o
corpo e ainda mais no ruído que provocava enquanto passava pelos ouvidos. Era
indiscutível que caía.
Ali, quando toda a palavra
se havia esvaído, com ela foram os juízos, com os juízos os receios, os
temores, as fobias, os desesperos, as dúvidas, as incertezas, os fatos, as
concretudes, os dogmas, as certezas, as verdades; Ali, quanto toda a palavra se
havia esvaído, reduzida toda uma existência passada à simplicidade do ato
presente, quando nem mais recordava, nem se preocupava, nem buscava, estendeu a
mão para “baixo”. Não sabia se havia um chão se aproximando, ignorava os termos
“chão”, “aproximação”, “impacto”, “morte”; ignorava braço e extensão, ignorava
seu indicador enquanto fato, apenas o percebia, puro ato, criação livre, divino
Michelangelo. Ali, suspenso todo o juízo, tocou uma verdade. Quiçá A Verdade? Tocou-a
sem pretensões, sem desejos, sem arrogância.
Ali o fez, puro ato, e do
ato retornou. Movimento de luzes e sombras, imagens disformes de todas as
dimensões, tudo isto substituído por negro. Atrito com o ar, violento em todo o
corpo e ainda mais no ruído que provocava enquanto passava pelos ouvidos,
convertido em lençóis, silêncio e colchão. Do ventre do quarto escuro
ressurgiam com força toda a sorte de memórias, palavras e conceitos. Ali, ainda
com o braço erguido, agora a apontar para as invisíveis manchas de umidade no
não tão distante teto, enquanto recuperava tudo aquilo que o tornava “eu”,
perdia a verdade que vislumbrara. No desespero para guardar ao menos um
fragmento, cercava-a de conceitos, explicações, descrições! Na mesma medida que
assim operava, a perdia, enterrada em conceitos, explicações, descrições, nada
disso ela mesma. Nada disso verdadeiramente verdadeiro. Significantes. Perdia,
ali, deitado com o braço nu estirado para o nada, o único Significado que
poderia desejar! *
Nota:
*Escrito ao som de “Machine Head”- Bush e “Roda
Viva”, Chico Buarque. Também da chuva!
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