Viveu toda a vida com base
em uma premissa simples: “A vida deve ser feita de prazeres!”. A mim, simples
transmissor daquela existência, não cabe qualquer crítica moral, denunciando
erros ou acertos.
Se cometeu crimes ou pecados, não me é facultado julgá-los.
Se “crime” e “pecado” são rótulos efetivamente válidos para as ações às quais
são afixados, que outros discutam, enquanto nossa espécie segue seu caminho
pelo mundo, enquanto nossas vidas particulares seguem seus trajetos. Ele, em
toda a simplicidade de sua premissa, viveu como desejou ter vivido, porém, não
viveu isolado. Enquanto vivia tomava contato com os rótulos, ainda que
ignorando-os:
- Meu rapaz, não faça isto.
- Procure uma vida
diferente, não se entregue assim.
- Construa uma vida com mais
valor.
- Onde acha que isto vai te
levar?
Era isto que ouvia.
Ignorava. Vivia. Pais, amigos, irmão, filhos, entre outros, procuravam
restaurar sua vida aos eixos da normalidade.
Ignorava.
Seguia vivendo sua premissa.
Mergulhava em tudo o que lhe
trazia prazer.
Aos quarenta e cinco anos de
idade, bebeu mais do que deveria ter bebido. Dirigiu como não deveria ter
feito. Bateu. Feriu-se. No relógio, 01h45 da madrugada de um sábado. Cada ação
realizada tornou-se uma entidade viva. Cada rótulo de crime e pecado
converteu-se em presas e garras destas entidades. Agarraram sua alma,
rasgando-a, ferindo-a, queimando-a com suas línguas incandescentes. Apesar da
dor descomunal, guardava algo de racional, mantinha algo do “Eu”. Apenas o
suficiente para medir o tempo naquela eternidade em que mergulhara,
categorizando, mensurando, cronometrando cada tipo de dor, cada nível de inferno.
Cada pecado, um inferno, cada inferno, um demônio, cada demônio, um período.
Tudo era mutilado e reconstruído para nova mutilação, apenas o braço direito
permanecia sempre intacto. O mesmo braço que erguia a pedra e riscava a parede
quando o sol daquele submundo se punha. Riscava, contava, sofria.
2.555 riscos na parede
marcaram sua estadia com o primeiro demônio, uma quimera com asas e três
cabeças, dentre as quais uma cuspia fogo e incendiava-lhe o corpo diariamente.
5.110 riscos na parede
marcaram sua estadia com o segundo demônio, um enxame de vespas e moscas as
quais, quando reunidas, apresentavam os contornos de uma imensa vespa.
Diariamente atravessavam seu corpo com seus ferrões ardentes. Moscas botavam
ovos dos quais nasciam imediatamente larvas que o devoravam até os ossos.
7.665 riscos na parede marcaram
sua estadia com o terceiro demônio, um homem velho, de vestes nobres, apesar do
rosto desfigurado. Carregava um saco de moedas de ouro e as metia na boca do
pecador, uma a uma, sufocando-o e preenchendo suas entranhas com o precioso
mineral até que estourassem, derramando o tesouro pelo chão. Todo o dia, um
novo corpo. Toda a tarde, novo tesouro e nova dor.
10.220 riscos na parede
marcaram sua estadia com o quarto demônio, uma criatura de corpo humano e calda
de dragão. Trazia consigo um imenso paralelepípedo o qual punha nas costas do
pecador, obrigando-o a carregá-lo dia e noite. Caia ao chão. Rasgava os
joelhos. Sentia a rocha tocando-lhe diretamente os músculos e nervos das
costas. Já não havia mais pele.
12.775 riscos na parede
marcaram sua estadia com o quinto demônio, uma criatura negra, com chifres e
cauda. Ele amarrava o pecador em um rochedo, enumerava os crimes de sua vida e
açoitava-o a cada crime anunciado.
15.330 riscos na parede
marcaram sua estadia com o sexto demônio, uma criatura marinha que o carregou
para o mar. O trazia à tona e mostrava o sucesso de cada pessoa que o pecador
conheceu. Depois o levava para o fundo, onde era sufocado pela água negra,
enquanto minúsculas criaturas feriam-lhe olhos e ouvidos.
17.885 riscos na parede
marcaram sua estadia com o sétimo demônio, um belíssimo anjo, de feições perfeitas,
que tocava bela música enquanto apresentava ao pecador cada uma de suas
próprias conquistas. Em seguida, destruías na sua frente. No final de cada dia,
devorava-lhe o rosto.
Terminadas as estadias e os
sofrimentos, olhou fixamente para o fundo branco que se colocava à sua frente.
Alguém de máscara segurava sua mão. O ruído da sirene ecoava em seus ouvidos.
Respirou seu último trago de ar terrestre. Morreu. Seu relógio marcava 02h13 da
madrugada de um sábado.
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