sexta-feira, 1 de março de 2013

Conto - O Estrangeiro


Muito tempo atrás, em um reino já esquecido pelos livros de História e pelas lendas, existiu um grande sábio - “O Sábio”, como era conhecido por seus contemporâneos - cuja voz tinha o poder de trazer a Paz aos corações, a Sabedoria aos espíritos e a Harmonia às tribos. O Sábio não tinha casa, andava pelas ruas das cidades, pelos vilarejos, pelo campo, falando aquilo que lhe brotava do coração a todos os que se dispusessem a ouvi-lo. Antes de deixar sua casa, o Sábio habitava o palácio de seus pais. Era muito respeitado pelos moradores da região, não pelo poder econômico de sua família, mas pela sabedoria ancestral com a qual dirigiam aquela comunidade. Certa vez, um grande grupo de pessoas foi até o palácio em busca do Sábio e de seus conselhos.

- Senhor, por favor, venha conosco.
- O que está acontecendo.
- Um demônio entrou em nossas terras.
O Sábio ficou perplexo com aquela informação. Nunca havia visto um demônio, por isto mesmo não acreditava em demônios. Seguiu aquele grupo até a parte oposta da cidade, na qual uma grande multidão se espremia circulando algo ainda invisível ao Sábio. Ao perceber sua presença, foram abrindo caminho para que chegasse ao centro do alvoroço, no qual uma figura antropomórfica estava parada em pé. Não seguia em frente, nitidamente impedida pela multidão que o cercava. Não falava, não respondia a inquisição popular, mas também não realizava movimentos que parecessem hostis. Apenas esperava. Vestia espessas roupas de cor parda. Não era possível ver as mãos ou os pés, tampouco a cabeça, completamente enfaixada em uma espécie de turbante que permitia ver apenas a faixa dos olhos. Mais que as roupas, aquela pequena parte descoberta era o que mais perturbava os populares, pois os negros olhos e seus contornos perfeitamente brancos eram ladeados por uma pele mais negra que uma noite sem luar. Jamais se havia visto algo assim por ali.
O Sábio se aproximou do suposto demônio, interrogando-o com o olhar. Absorvia as informações trazidas pela imagem e refletia. A estranha figura o olhava nos olhos. Não recuava nem avançava. Apenas aguardava. O morador do palácio observou que uma gota de suor escorria pelo canto daquele pequeno trecho de pele exposta, contornava o olho esquerdo e desaparecia no tecido logo abaixo. Afastou-se e mergulhou na multidão. Ninguém sabia o que fazer. Não receberam orientação do Sábio. Temiam tocar o demônio, por isso não o atacavam, mas também temiam as pestes que poderiam acompanhá-lo se entrasse na cidade. Mais que isto, temiam ofender suas divindades ao dar acolhida ao demônio, ainda que não tivesse apresentado hostilidade. Minutos depois, notaram o retorno do Sábio. Trazia consigo uma cabaça cheia d’água. Estendeu-a à figura. O estrangeiro levantou as mãos e começou a desenrolar as faixas que cobriam a cabeça. O terror tomou conta dos populares. Cada nova volta à remover tecido evidenciava uma pele totalmente negra, cheia de marcas, com símbolos de algum culto pecaminoso. Não havia qualquer traço de cabelo. Em seu lugar, mais figuras de louvor a entidades desconhecidas naquele lugar. Descoberta a cabeça, o estranho dobrou o tecido cuidadosamente e o depositou no chão, à sua direita. Em um movimento suave, caminhou até o Sábio, recebendo a cabaça com as duas mãos. Cabeça voltada ao chão, em reverência àquele que o acolhia. O povo se espantou com o gesto, evidente signo de gratidão, não importava o idioma. O estrangeiro bebeu quase toda a água, devolvendo a cabaça semi-vazia novamente com as duas mãos estendidas e com o rosto voltado ao chão. Com um gesto das mãos, dois funcionários do palácio se aproximaram. O Sábio convidou o estrangeiro, novamente por meio de sinais, a segui-los. O homem fez uma profunda reverência, tomou seu tecido do chão e foi com eles.
O povo, perplexo e ainda com profundo receito interrogou o Sábio, desejando compreender porque havia acolhido o demônio.
- Este homem tem uma pele diferente da nossa. Trás vestes e figuras que nos são estranhas. Mas não é mais demoníaco que qualquer um de nós. Talvez ainda menos.
- Como você pode saber isto?
- Todos sabem que habito ainda em um grande palácio, enquanto vocês habitam em casas pequenas e humildes. Algum dentre vocês é menos digno de água e amizade do que eu? A pele daquele homem é como o meu palácio e a minha pele é como as choupanas de vocês. Não é na casa que estão riqueza e humanidade, é no espírito e no olhar.

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