Muito tempo atrás, em um
reino já esquecido pelos livros de História e pelas lendas, existiu um grande
sábio - “O Sábio”, como era conhecido por seus contemporâneos - cuja voz tinha
o poder de trazer a Paz aos corações, a Sabedoria aos espíritos e a Harmonia às
tribos. O Sábio não tinha casa, andava pelas ruas das cidades, pelos vilarejos,
pelo campo, falando aquilo que lhe brotava do coração a todos os que se
dispusessem a ouvi-lo. Antes de deixar sua casa, o Sábio habitava o palácio de
seus pais. Era muito respeitado pelos moradores da região, não pelo poder
econômico de sua família, mas pela sabedoria ancestral com a qual dirigiam
aquela comunidade. Certa vez, um grande grupo de pessoas foi até o palácio em
busca do Sábio e de seus conselhos.
- Senhor, por favor, venha
conosco.
- O que está acontecendo.
- Um demônio entrou em
nossas terras.
O Sábio ficou perplexo com
aquela informação. Nunca havia visto um demônio, por isto mesmo não acreditava
em demônios. Seguiu aquele grupo até a parte oposta da cidade, na qual uma
grande multidão se espremia circulando algo ainda invisível ao Sábio. Ao
perceber sua presença, foram abrindo caminho para que chegasse ao centro do
alvoroço, no qual uma figura antropomórfica estava parada em pé. Não seguia em
frente, nitidamente impedida pela multidão que o cercava. Não falava, não
respondia a inquisição popular, mas também não realizava movimentos que parecessem
hostis. Apenas esperava. Vestia espessas roupas de cor parda. Não era possível
ver as mãos ou os pés, tampouco a cabeça, completamente enfaixada em uma
espécie de turbante que permitia ver apenas a faixa dos olhos. Mais que as
roupas, aquela pequena parte descoberta era o que mais perturbava os populares,
pois os negros olhos e seus contornos perfeitamente brancos eram ladeados por
uma pele mais negra que uma noite sem luar. Jamais se havia visto algo assim
por ali.
O Sábio se aproximou do
suposto demônio, interrogando-o com o olhar. Absorvia as informações trazidas
pela imagem e refletia. A estranha figura o olhava nos olhos. Não recuava nem
avançava. Apenas aguardava. O morador do palácio observou que uma gota de suor
escorria pelo canto daquele pequeno trecho de pele exposta, contornava o olho
esquerdo e desaparecia no tecido logo abaixo. Afastou-se e mergulhou na
multidão. Ninguém sabia o que fazer. Não receberam orientação do Sábio. Temiam
tocar o demônio, por isso não o atacavam, mas também temiam as pestes que
poderiam acompanhá-lo se entrasse na cidade. Mais que isto, temiam ofender suas
divindades ao dar acolhida ao demônio, ainda que não tivesse apresentado
hostilidade. Minutos depois, notaram o retorno do Sábio. Trazia consigo uma
cabaça cheia d’água. Estendeu-a à figura. O estrangeiro levantou as mãos e
começou a desenrolar as faixas que cobriam a cabeça. O terror tomou conta dos
populares. Cada nova volta à remover tecido evidenciava uma pele totalmente
negra, cheia de marcas, com símbolos de algum culto pecaminoso. Não havia
qualquer traço de cabelo. Em seu lugar, mais figuras de louvor a entidades
desconhecidas naquele lugar. Descoberta a cabeça, o estranho dobrou o tecido
cuidadosamente e o depositou no chão, à sua direita. Em um movimento suave,
caminhou até o Sábio, recebendo a cabaça com as duas mãos. Cabeça voltada ao
chão, em reverência àquele que o acolhia. O povo se espantou com o gesto, evidente
signo de gratidão, não importava o idioma. O estrangeiro bebeu quase toda a
água, devolvendo a cabaça semi-vazia novamente com as duas mãos estendidas e
com o rosto voltado ao chão. Com um gesto das mãos, dois funcionários do
palácio se aproximaram. O Sábio convidou o estrangeiro, novamente por meio de
sinais, a segui-los. O homem fez uma profunda reverência, tomou seu tecido do
chão e foi com eles.
O povo, perplexo e ainda com
profundo receito interrogou o Sábio, desejando compreender porque havia
acolhido o demônio.
- Este homem tem uma pele
diferente da nossa. Trás vestes e figuras que nos são estranhas. Mas não é mais
demoníaco que qualquer um de nós. Talvez ainda menos.
- Como você pode saber isto?
- Todos sabem que habito
ainda em um grande palácio, enquanto vocês habitam em casas pequenas e
humildes. Algum dentre vocês é menos digno de água e amizade do que eu? A pele
daquele homem é como o meu palácio e a minha pele é como as choupanas de vocês.
Não é na casa que estão riqueza e humanidade, é no espírito e no olhar.
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