sexta-feira, 10 de maio de 2013

Conto - O Velho


Muito tempo atrás, num local esquecido pelos mapas, existiu um grande sábio, cujos ensinamentos reverberavam por toda parte, transformando tudo por onde passava; “O Sábio”, como era conhecido, peregrinava pelo mundo, vivia de esmolas e retribuía com conhecimento. Em certa ocasião, já no fim da tarde, muitos habitantes de um povoado começavam a se amontoar ao redor do Sábio, em busca de alimento para seus espíritos, já tendo concluído as tarefas diárias que lhes garantiriam o alimento do corpo. Ele estava sentado no chão, sem tapete que o separasse da poeira, roupas tingidas pelo mesmo vermelho da poeira que coloria todas as construções. Pelo menos dois terços da cidade estava sentado ao seu redor aguardando ansioso alguma grande maravilha escorrer de seus lábios.

- Existem três fontes de riqueza – Disse ele – A riqueza que obtemos por herança, a riqueza que obtemos pelo trabalho e a riqueza que obtemos pela voz.
- Que riqueza pode trazer a voz? Perguntou um
- E a riqueza obtida pelo roubo? Protestou outro
- A riqueza da voz é a mais valiosa, pois uma vez obtida, jamais poderá ser-lhes tomada. Esta é a riqueza que os senhores procuram vindo até aqui. Esta é a riqueza que os senhores obtem, quando buscam os conselhos dos sábios. A riqueza do trabalho vale mais que a riqueza da herança, mas sem a riqueza da Sabedoria que obtemos pela voz de nosso próximo, todas as demais não passam de pó e cinzas. “E o roubo?”, você me pergunta – e este "você" nada tinha de impessoal, pois o olhar do Sábio atravessou a multidão até atingir exatamente o emissor da questão – o roubo jamais gera riqueza. Se assim o fosse, todo o ladrão se aposentaria em breve e eu nunca vi um ladrão aposentado.
- Viemos aqui para obter a paz! Gritou um terceiro
Quando o Sábio estava prestes a iniciar a resposta, notou um estranho movimento entre as pessoas sentadas à sua direita. Com mais atenção, percebeu que se deslocavam para os lados, umas intrigadas, outras enfurecidas, todas dando passagem a um velho que se arrastava com o rosto voltado ao chão. Quando finalmente venceu as intermináveis fileiras de ouvintes, o velho, ainda prostrado, começou a falar:
- Meu senhor. Há cinquenta anos eu deixei a casa de meu pai em busca do tesouro que o senhor anuncia. Há cinquenta anos caminho por todo este mundo de sofrimentos, tendo encontrado todo o tipo de gente, muitos chamados “sábios”, mas nenhum com a voz que iluminaria meu coração. Estou velho e hoje ando sem rumo, sem ter a esperança de alcançar a Sabedoria que tanto desejei quando o mundo era pequeno e minhas pernas eram fortes. Acaso é o senhor quem irá por fim à minha busca? Ou devo aceitar minha derrota e retirar-me desta existência vazia?
O Sábio examinou o Velho por uns instantes, depois pediu que se levantasse. Deveria ter sido um homem magnífico, pois mesmo curvado pela idade era difícil supor que qualquer um daquela cidade lhe poderia tomar a bolsa, se ele erguesse. Mesmo ereto, o Velho olhava para o chão. Demonstrava reverência e resignação, pois não se julgava digno nem mesmo de olhar para a Sabedoria diante de si.
- Meu amigo! – iniciou o Sábio – Há cinquenta anos caminha por este mundo. Me diga, durante todo este tempo, sempre dormiu sob as estrelas?
- Não, meu senhor. Pela amizade dos deuses, muitas vezes fui acolhido em casas por onde passava, comia e dormia protegido do frio e dos animais.
- Estas pessoas que te acolhiam, eram sempre homens? Sempre solteiros?
- Não meu senhor; Quase sempre famílias; Homens casados com belas senhoras?
- Então me diga, meu amigo, e seja honesto. Quantas belas senhoras cobiçou? Quantas possuiu?
- Meu senhor; Os deuses sabem que não sou puro; Desejei muitas delas; Quando havia vigor e beleza em mim, fui procurado por algumas, mas os deuses sabem, igualmente, que jamais toquei em nenhuma.
- Eu entendo! Responda-me outra pergunta. As pessoas que te acolhiam eram sempre pobres? Miseráveis compartilhando contigo o fruto da mendicância?
- Não, meu senhor. Alguns eram humildes, outros muito abastados. Todos sempre de corações muito nobres, sempre dispostos a ajudar um peregrino como eu.
- Destes todos que te acolheram, de quantos apanhou para si algo que lhe tenha interessado?
- Perdoe este tolo, meu senhor. Não entendo a pergunta.
- Algo lhe foi dado, sem dúvida. O abrigo, o alimento, talvez as vestes. Mas poderia ter-lhe parecido proveitoso apanhar algo mais. Um objeto para vender adiante. Uma bolsa de moedas para garantir uma viagem menos penosa. Algo assim.
- Não, meu senhor. Eu jamais suportaria a idéia de apanhar para mim o que não me fosse de direito. Mesmo o que me era dado já estava além do meu merecimento.
- Eu entendo! Ilumina minha mente para uma terceira dúvida, meu amigo. Nestes cinquenta anos vagando por este mundo de sofrimentos, era você o mais miserável em todos os caminhos pelos quais passou?
- Isto é pouco provável, meu senhor. Há muitos que sofrem muitos mais e que possuem muito menos que eu.
- Te entristecia não ter nada para ajudá-los?
- Não, meu senhor. Isto nunca me entristeceu, pois ainda que fosse grande a minha pobreza, sempre havia o que compartilhar.
- Eu entendo! Não tenho mais o que perguntar. Por favor, vá embora!
Todos ficaram chocados, sobretudo o Velho. Imaginava que acabara de ser submetido a um teste e fracassara.
- Meu senhor, eu não entendo. Por favor, fala comigo. Ensina-me a ser sábio.
- Meu senhor – Respondeu o Sábio, enquanto levava a própria face ao chão – serei eternamente grato por sua visita. Pela luz que trouxeste a mim e a estes meus amigos. Por cinquenta anos você caminhou por este mundo em busca do que sempre possuiu. Por cinquenta anos acreditou estar buscando, mas levava. Acreditou estar recebendo, mas distribuía. Acreditou-se em trevas, mas iluminava.
O velho partiu. A multidão se dispersou. À noite, sozinho, o Sábio chorou. Comovia-lhe profundamente a imensa benevolência da vida. Por cinquenta anos havia caminhado pelo mundo falando da sabedoria que buscava. Por cinquenta anos procurou e, na mais inusitada tarde, a Sabedoria se achegou a ele, coroada de humildade, disfarçada de cansaço, arrastando-se por entre a multidão.

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