Foi como um abrir de olhos,
mas nada havia para ver. De fato, não havia o que abrir. Ainda assim, foi como
um abrir de olhos, como o despertar de um longo sono, embora não houvesse
lembrança de sonhos, muito menos das vigílias que os antecedessem. Não havia
qualquer lembrança, um fenômeno que intrigaria qualquer consciência racional,
afinal, se não havia lembrança, não haveria domínio da língua e, sem esta,
qualquer capacidade de inferir. Se não inferia, como se poderia supor alguma
razão? E, sem qualquer razão, como teria consciência? Ainda assim, na plena
ausência de língua, inferência e lembrança, percebia. Reconhecia o que lhe era
imediato; “dado” e “passado” se entrecruzavam. Percebia as adjacências na sutil
idéia de não-eu.
Sem pele, não poderíamos supor
o tato, mas havia superfície e, por esta, percebia movimento. Não “pouco
movimento”, nem “considerável movimento”, mas um “vigoroso e crescente
movimento” em direção ao desconhecido.
Sem mãos nem olhos para
vasculhar os arredores, não seria possível esperar que reconhecesse qualquer “não-eu”,
ainda assim, reconhecia. A clareza da percepção dos arredores teria sido
comparada à da visão, para quem recordasse já ter enxergado; seria descrita
como visão, por quem dominasse qualquer idioma. Ali, ausentes língua, memória,
olhos e mãos, apenas percebia. Pares espalhados em todas as direções - talvez
irmãos – correndo todos na mesma direção. Corpos idênticos ao seu, delineados
pelo “espaço” no qual todos mergulhavam. Espaço preenchido pelo movimento, idêntico
ao seu em escala e vigor, oposto na direção.
Procuro estabelecer
comunicação, mas o que poderia ter dito? “Olá”, “Hello”, “Bonjour”? Estava
preenchido por ondas proposicionais facilmente identificáveis com pensamentos,
mas sem a “ponte interespiritual” do verbo. Existia? Muito longe dali, mas simultaneamente,
outro espírito mergulhava em percepções análogas; Este via, tocava, pensava,
discutia. Absorvera o idioma de seus pares – talvez irmãos – tornado-se parte
deles; tornando-os partes de si. De algum modo, transformavam-se em fragmentos
de um grande oceano criativo, cada um mergulhado no outro, espaços vazios, com
ou sem movimento, eram preenchidos por voz: espírito despejado no mundo. Não só
na língua de seus pares; apreendera a língua superior, a língua dos ancestrais –
talvez pares- a língua dos sábios. Com as mesmas palavras dos sábios,
utilizadas infinitas vezes antes, tantas outras depois, registrou e eternizou o
inédito: “ego cogito, ego sum”.
Menos distantes dali que há
pouco, despido de mãos, olhos, memórias, latim e francês, um “ego” percebia o “alter”;
cogitava-se? Cogitava-o? Existia? Menos distante do “homem da língua dos sábios”
que poderia ter desejado, supondo poder desejar, ignorava a existência dos sábios;
podia ignorar; A primeira dúvida daquele existência, exprimida em ondas
intelectuais inefáveis, teria perguntando na superioridade – quiçá insignificância
– do francês arcaico: “Para onde vou?”
A dúvida foi subitamente
substituída pela ausência. Foram milésimos de segundos? Foram horas? Quem mediu
o tempo? O que significa “Tempo”? A terrível percepção das supressões era tão
poderosa que quase teria levado à criação da primeira palavra; e seria “Saudade”.
Os irmãos – talvez sábios – mais avançados no inevitável movimento adiante,
desapareciam. Um aqui, outro ali, cinco em lote. Outros anciãos – talvez egos –
desesperadoramente mais próximos, “desexistiam”. A saudade virou terror, o qual
vinha com a certeza do “ponto final”. Ponto este sem qualquer figura de
linguagem; era quase tangível o exato ponto no qual todos os “não-eu”
desapareciam. Então não havia mais qualquer “não-eu” – talvez “eu-mesmo”- entre
ele e o “limite”. Quando não havia mais espaço entre o “ego” e o “limite”, não
havia mais movimento adiante nem movimento contrário, o terror foi substituído
pela simples percepção de que era para aquele limite que se destinava, desde o
início de sua jornada. Quando aceitou, tocou o limite.
Pouco abaixo dali, o “filho dos
sábios” – talvez amante da sabedoria – fechava o caderno no qual registrara
suas meditações metafísicas. Apagou a vela. Deitou-se e dormiu, embalado pelo
suave som da chuva chocando-se contra o telhado. Seu último pensamento
consciente, já tingido de sono e de sonho, perguntava: “O que me teria narrado
a chuva, se a chuva pudesse narrar?”
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