quinta-feira, 16 de maio de 2013

Conto - Existiu


Foi como um abrir de olhos, mas nada havia para ver. De fato, não havia o que abrir. Ainda assim, foi como um abrir de olhos, como o despertar de um longo sono, embora não houvesse lembrança de sonhos, muito menos das vigílias que os antecedessem. Não havia qualquer lembrança, um fenômeno que intrigaria qualquer consciência racional, afinal, se não havia lembrança, não haveria domínio da língua e, sem esta, qualquer capacidade de inferir. Se não inferia, como se poderia supor alguma razão? E, sem qualquer razão, como teria consciência? Ainda assim, na plena ausência de língua, inferência e lembrança, percebia. Reconhecia o que lhe era imediato; “dado” e “passado” se entrecruzavam. Percebia as adjacências na sutil idéia de não-eu.

Sem pele, não poderíamos supor o tato, mas havia superfície e, por esta, percebia movimento. Não “pouco movimento”, nem “considerável movimento”, mas um “vigoroso e crescente movimento” em direção ao desconhecido.
Sem mãos nem olhos para vasculhar os arredores, não seria possível esperar que reconhecesse qualquer “não-eu”, ainda assim, reconhecia. A clareza da percepção dos arredores teria sido comparada à da visão, para quem recordasse já ter enxergado; seria descrita como visão, por quem dominasse qualquer idioma. Ali, ausentes língua, memória, olhos e mãos, apenas percebia. Pares espalhados em todas as direções - talvez irmãos – correndo todos na mesma direção. Corpos idênticos ao seu, delineados pelo “espaço” no qual todos mergulhavam. Espaço preenchido pelo movimento, idêntico ao seu em escala e vigor, oposto na direção.
Procuro estabelecer comunicação, mas o que poderia ter dito? “Olá”, “Hello”, “Bonjour”? Estava preenchido por ondas proposicionais facilmente identificáveis com pensamentos, mas sem a “ponte interespiritual” do verbo. Existia? Muito longe dali, mas simultaneamente, outro espírito mergulhava em percepções análogas; Este via, tocava, pensava, discutia. Absorvera o idioma de seus pares – talvez irmãos – tornado-se parte deles; tornando-os partes de si. De algum modo, transformavam-se em fragmentos de um grande oceano criativo, cada um mergulhado no outro, espaços vazios, com ou sem movimento, eram preenchidos por voz: espírito despejado no mundo. Não só na língua de seus pares; apreendera a língua superior, a língua dos ancestrais – talvez pares- a língua dos sábios. Com as mesmas palavras dos sábios, utilizadas infinitas vezes antes, tantas outras depois, registrou e eternizou o inédito: “ego cogito, ego sum”.
Menos distantes dali que há pouco, despido de mãos, olhos, memórias, latim e francês, um “ego” percebia o “alter”; cogitava-se? Cogitava-o? Existia? Menos distante do “homem da língua dos sábios” que poderia ter desejado, supondo poder desejar, ignorava a existência dos sábios; podia ignorar; A primeira dúvida daquele existência, exprimida em ondas intelectuais inefáveis, teria perguntando na superioridade – quiçá insignificância – do francês arcaico: “Para onde vou?”
A dúvida foi subitamente substituída pela ausência. Foram milésimos de segundos? Foram horas? Quem mediu o tempo? O que significa “Tempo”? A terrível percepção das supressões era tão poderosa que quase teria levado à criação da primeira palavra; e seria “Saudade”. Os irmãos – talvez sábios – mais avançados no inevitável movimento adiante, desapareciam. Um aqui, outro ali, cinco em lote. Outros anciãos – talvez egos – desesperadoramente mais próximos, “desexistiam”. A saudade virou terror, o qual vinha com a certeza do “ponto final”. Ponto este sem qualquer figura de linguagem; era quase tangível o exato ponto no qual todos os “não-eu” desapareciam. Então não havia mais qualquer “não-eu” – talvez “eu-mesmo”- entre ele e o “limite”. Quando não havia mais espaço entre o “ego” e o “limite”, não havia mais movimento adiante nem movimento contrário, o terror foi substituído pela simples percepção de que era para aquele limite que se destinava, desde o início de sua jornada. Quando aceitou, tocou o limite.
Pouco abaixo dali, o “filho dos sábios” – talvez amante da sabedoria – fechava o caderno no qual registrara suas meditações metafísicas. Apagou a vela. Deitou-se e dormiu, embalado pelo suave som da chuva chocando-se contra o telhado. Seu último pensamento consciente, já tingido de sono e de sonho, perguntava: “O que me teria narrado a chuva, se a chuva pudesse narrar?”

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