Sensato era estar ali, a
margem da avenida, não da sociedade. Todas as manhãs, sentava-se à mesma mesa,
saboreando seu café. Sensata era a cortesia que demonstrava ao garçom, um
senhor já de idade avançada, ao qual já não mais dirigia o pedido; a xícara
abastecida de café preto e leite à parte e o pequeno pote com açúcar mascavo
alcançam a mesa simultaneamente à sua chegada. Sorriso respeitoso e “Bom dia!”.
O garçom não puxava assunto; sensato, respeitava o cliente, sempre inclinado
sobre alguma leitura, enquanto cumpria o ritual de saborear o café bem
lentamente. Vez ou outra desviava-se do papel, admirando os prédios, o trânsito
e os passantes, enquanto refletia sobre o trecho que acabara de ler. Era um linguista.
Apaixonado pelo próprio idioma, sempre trazia consigo algum clássico, assim
como um bom dicionário.
Vez ou outra abria o
dicionário aleatoriamente, estudando os significados de algumas palavras.
Redescobria-as. Naquela manhã era o verbete “Sensato” que havia visitado.
Agradava-lhe a primeira descrição, “Que tem bom senso; ajuizado, avisado,
discreto, prudente”, incomodou-lhe a segunda, “Que é conforme ao bom senso”.
Nada contra o “bom senso”, mas não queria ser “conforme”. “Conforme” era ter a
mesma forma, mas também era resignar-se. Inconformou-se com sua sensatez.
Mirando os transeuntes, notou um mendigo. O homem, necessariamente inconforme ao
que se espera de um indivíduo em sociedade, posto que não trabalhava, não
consumia, não prosperava, também era inconforme ao que se espera de alguém em
sua situação, pois não pedia. O erudito notou que o olhar do garçom
alternava-se entre ele e o mendigo. Olhar que evidenciava o insensato desejo de
romper o silêncio de tantas manhãs, em busca de ocasião para o diálogo.
Explodiu:
- Sabe. Eu trabalho aqui há
quarenta e cindo anos. Faz, pelo menos cinco, que vejo este sujeito passar
aqui, todas as manhãs, carregando um papel em branco. Vai para não se sabe
onde. Retorna de mãos vazias.
Sensato seria rir daquele
fato, terminar o café, seguir para o trabalho. O erudito agradeceu o café relatando
que, como de costume, estava exatamente como ele gostava. Pagou, guardou suas
coisas e seguiu o mendigo. Este andava apressado, como que ansioso por algo.
Entrando em vielas nas quais toda a sensatez e bom senso evidenciavam que não
se deveria seguir. Seguiu. Entraram em um antigo sobrado, certamente abandonado
há tempos. Subindo as escadas, atingiram um quarto. Porta trancada. O mendigo
olhou para trás, alertando ao erudito que notara sua presença, mas não se
queixou da mesma, nem realizou qualquer movimento que sugerisse isto. Abriu.
Entraram. No canto do quarto, abaixo de uma abertura na parede, alta demais
para se atingir simplesmente em pé, uma pilha de folhas brancas perfeitamente
alinhadas já atingia altura superior a um metro ¹. Com reverência, o mendigo
depositou ali a folha daquele dia, cuidando para que o alinhamento fosse exato.
- Por que você faz isto? Há
quanto tempo faz isto?
- Por que você lê seus livros?
Há quanto tempo os estuda?
- Ora. Creio que estudei
toda a vida.
- E o que conseguiu com
isto?
- Construí minha vida com
trabalho árduo.
- Também é árduo o trabalho
de construir esta pilha.
- O que pode ser mais leve
que uma folha de papel?
- O que pode ser mais pesado
que o tempo?
- Então por que não traz mais
papel em cada viagem? Por que não traz logo um banco?
O mendigo pôs um dos pés bem
no centro da pilha, a qual se comprimiu com seu peso, mas não caiu. Ergueu seu
corpo e espiou pela janela. Espiou algo, depois retornou ao solo.
- Sempre há algo para ver
além, mas só estaremos totalmente preparados para compreender se a dedicação e
a paciência tiverem sido as bases do percurso.
Nota:
¹ Baseado em metáfora análoga, proposta por
Daisaku Ikeda, Escritor, Filósofo e líder religioso.
grata Marcelo Moreira por mais esta reflexão . abraço afetuoso de leitora e amiga.
ResponderExcluirvirgínia vicamf nHamburgo RS BR
Boa Noite Virgínia!
ExcluirResta-me apenas manifestar minha gratidão por toda a boa vontade que demonstra para com estes textos.
Fico realmente muito grato!
Um grande abraço!