Dedico este texto à
Professora Doutora Rita Paiva, pela confiança gratuitamente
depositada neste estranho que, por fim, mostrou-se tão aquém de
qualquer expectativa:
Folhas secas de árvores
voando no vento de inverno. Folhas secas de papel desordenadamente
lançadas sobre a mesa. Folhas secas preenchidas de cor, amassadas
enfurecidamente e lançadas por todo o espaço.
Não faltava inspiração.
Faltava o meio. A textura do papel, o brilho e tom dos pigmentos, a
técnica das mãos, nada alcançava o grau de perfeição que trazia
na alma. Estava à beira do abismo, ali onde mora o eterno conflito
entre o espírito e a matéria, esta sempre tão aquém daquele.
Mesmo a palavra "perfeição", repleta da materialidade
daquilo que é muito mais um som que um sentimento, mesmo que ainda
não pronunciado, estava aquém daquilo que trazia na alma. Já havia
manchado telas com óleo, riscado papel com carvão, lápis, pastel…
sentia-se prestes a enlouquecer, dada a violência com a qual aquele
sentimento atingia seu espírito e a profunda ineficiência com a
qual suas mãos o devolviam ao mundo. Era como uma panela de pressão
com a válvula defeituosa.
Não apenas o quarto
estava uma bagunça, mas sim toda a casa e principalmente a alma do
seu habitante. Louça acumulada sobre a pia com restos em putrefação
e uma festa de artrópodes. A geladeira vazia com a porta escancarada
já não desperdiçada mais energia elétrica, cortada há alguns
dias. Três cadeiras intactas pareciam reunidas em oração pela alma
da companheira, cujos fragmentados depositaram-se sobre a mesa quando
fora arrebentada na parede. Desolação por toda parte. Sabe-se lá
desde quando não comia. Não sentia fome, só o latejar do espírito
prestes a arrebatar o corpo tão pequeno.
Sentiu algo estalando
dentro de si, um verdadeiro romper-se. Olhou mais uma vez ao redor.
Nunca havia olhado ao redor. O mesmo mundo. Um novo mundo. Olhou o
dado como se este não estivesse ali. Percebeu que havia algum
decréscimo entre o dado e o percebido. Se era assim na entrada,
quanto mais não seria na saída? Menos que o real quando percebia.
Menos que o percebido quando comunicava. Menos ainda quando o outro
percebia o comunicado. Sempre menos. Nunca o real. Ilusões
mergulhadas em ilusões. Se não ilusões, confusões, de qualquer
modo, nunca o real. Desperto para a possibilidade do engano na
percepção que tinha do mundo externo isolou-se em seu interior. Se
os sentidos podiam enganar-lhe, ao menos a afecção que tinha do seu
interior deveria ser honesta. Percebeu então que também ali poderia
se enganar, tomado que estava pelos vícios de interpretação
adquiridos na vida cotidiana. Aterrorizou-se. "Não é possível
capturar a Verdade. E se fosse, não a poderia comunicar. A
comunicação não existe!". Caiu com joelhos e face no chão. A
avalanche de descobertas, porém, não cessou. "Talvez seja
possível perceber a Verdade se olhar na direção certa. Se souber
fazer ao espírito as perguntas corretas." Mas não era
cientista, investigador ou filósofo. Era um artista. Um comunicador
de sentimentos com o coração destruído pela percepção de que
nada comunicava. Apanhou uma folha caída ao lado de sua cabeça,
sentou sobre as pernas e a desamassou. Os pigmentos, ainda úmidos,
misturaram-se aleatoriamente quando o papel foi amassado. A confusão
de cores, entretanto, não era apenas caótica. Havia algo escondido
ali. Algo em ressonância com o sentimento incomunicável que
pretendera comunicar. "Não posso dizer diretamente, mas posso
sugerir!"
Olhou mais uma vez ao
redor. Nunca havia olhado ao redor. Se o incomunicável podia ao
menos ser sugerido, a Verdade, o imperceptível poderia, talvez,
apresentar indicações. Olhou mais uma vez… e outra… e outra.
Retornou à pequena mesa na qual trabalhava. Tomou uma nova folha
branca. Olhou pela janela à sua frente. Em meio ao vento, ao vôo
das folhas secas e ao emaranhado de galhos nus e retorcidos conseguiu
encontrar uma tímida folha verde, resistindo ao vento e ao frio. Não
sabia se era uma sobrevivente, agarrada ao galho e à vida sabe-se lá
por quanto tempo, ou se era um arauto da primavera. Não importava.
Não retrataria o inverno, tampouco a primavera, nada de folhas
secas, nem mesmo a brava luta da folha verde. Seu espírito
ultrapassava a imagem trazida pela luz. Vislumbrava a seiva
percorrendo os galhos aparentemente sem vida, os movimentos das
massas de ar que originavam o vento, a inclinação planetária que
possibilitava o inverno, tudo. Quando rompeu com o compromisso de
transmitir, apreendeu. Apanhou um lápis HB sem intenção de
apresentar. "Não posso falar do que vivi, apenas sugerir a
direção daquilo que vi.". Levou a mão ao alto da folha,
deixando espaço suficiente para o título no qual pensaria depois.
"Não posso te mostrar. Tentarei te levar até lá. Este texto
não será um poema, uma ficção nem uma aula. Antes de tudo, será
uma provocação..."
Seguiu sem saber para
onde. Um espírito livre, mais até que as folhas secas lá fora,
pois não ia com o vento, ia consigo. Fez-se filósofo!
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