sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Conto - Folhas

      Dedico este texto à Professora Doutora Rita Paiva, pela confiança gratuitamente depositada neste estranho que, por fim, mostrou-se tão aquém de qualquer expectativa:

     Folhas secas de árvores voando no vento de inverno. Folhas secas de papel desordenadamente lançadas sobre a mesa. Folhas secas preenchidas de cor, amassadas enfurecidamente e lançadas por todo o espaço.
      Não faltava inspiração. Faltava o meio. A textura do papel, o brilho e tom dos pigmentos, a técnica das mãos, nada alcançava o grau de perfeição que trazia na alma. Estava à beira do abismo, ali onde mora o eterno conflito entre o espírito e a matéria, esta sempre tão aquém daquele. Mesmo a palavra "perfeição", repleta da materialidade daquilo que é muito mais um som que um sentimento, mesmo que ainda não pronunciado, estava aquém daquilo que trazia na alma. Já havia manchado telas com óleo, riscado papel com carvão, lápis, pastel… sentia-se prestes a enlouquecer, dada a violência com a qual aquele sentimento atingia seu espírito e a profunda ineficiência com a qual suas mãos o devolviam ao mundo. Era como uma panela de pressão com a válvula defeituosa.
      Não apenas o quarto estava uma bagunça, mas sim toda a casa e principalmente a alma do seu habitante. Louça acumulada sobre a pia com restos em putrefação e uma festa de artrópodes. A geladeira vazia com a porta escancarada já não desperdiçada mais energia elétrica, cortada há alguns dias. Três cadeiras intactas pareciam reunidas em oração pela alma da companheira, cujos fragmentados depositaram-se sobre a mesa quando fora arrebentada na parede. Desolação por toda parte. Sabe-se lá desde quando não comia. Não sentia fome, só o latejar do espírito prestes a arrebatar o corpo tão pequeno.
      Sentiu algo estalando dentro de si, um verdadeiro romper-se. Olhou mais uma vez ao redor. Nunca havia olhado ao redor. O mesmo mundo. Um novo mundo. Olhou o dado como se este não estivesse ali. Percebeu que havia algum decréscimo entre o dado e o percebido. Se era assim na entrada, quanto mais não seria na saída? Menos que o real quando percebia. Menos que o percebido quando comunicava. Menos ainda quando o outro percebia o comunicado. Sempre menos. Nunca o real. Ilusões mergulhadas em ilusões. Se não ilusões, confusões, de qualquer modo, nunca o real. Desperto para a possibilidade do engano na percepção que tinha do mundo externo isolou-se em seu interior. Se os sentidos podiam enganar-lhe, ao menos a afecção que tinha do seu interior deveria ser honesta. Percebeu então que também ali poderia se enganar, tomado que estava pelos vícios de interpretação adquiridos na vida cotidiana. Aterrorizou-se. "Não é possível capturar a Verdade. E se fosse, não a poderia comunicar. A comunicação não existe!". Caiu com joelhos e face no chão. A avalanche de descobertas, porém, não cessou. "Talvez seja possível perceber a Verdade se olhar na direção certa. Se souber fazer ao espírito as perguntas corretas." Mas não era cientista, investigador ou filósofo. Era um artista. Um comunicador de sentimentos com o coração destruído pela percepção de que nada comunicava. Apanhou uma folha caída ao lado de sua cabeça, sentou sobre as pernas e a desamassou. Os pigmentos, ainda úmidos, misturaram-se aleatoriamente quando o papel foi amassado. A confusão de cores, entretanto, não era apenas caótica. Havia algo escondido ali. Algo em ressonância com o sentimento incomunicável que pretendera comunicar. "Não posso dizer diretamente, mas posso sugerir!"
      Olhou mais uma vez ao redor. Nunca havia olhado ao redor. Se o incomunicável podia ao menos ser sugerido, a Verdade, o imperceptível poderia, talvez, apresentar indicações. Olhou mais uma vez… e outra… e outra. Retornou à pequena mesa na qual trabalhava. Tomou uma nova folha branca. Olhou pela janela à sua frente. Em meio ao vento, ao vôo das folhas secas e ao emaranhado de galhos nus e retorcidos conseguiu encontrar uma tímida folha verde, resistindo ao vento e ao frio. Não sabia se era uma sobrevivente, agarrada ao galho e à vida sabe-se lá por quanto tempo, ou se era um arauto da primavera. Não importava. Não retrataria o inverno, tampouco a primavera, nada de folhas secas, nem mesmo a brava luta da folha verde. Seu espírito ultrapassava a imagem trazida pela luz. Vislumbrava a seiva percorrendo os galhos aparentemente sem vida, os movimentos das massas de ar que originavam o vento, a inclinação planetária que possibilitava o inverno, tudo. Quando rompeu com o compromisso de transmitir, apreendeu. Apanhou um lápis HB sem intenção de apresentar. "Não posso falar do que vivi, apenas sugerir a direção daquilo que vi.". Levou a mão ao alto da folha, deixando espaço suficiente para o título no qual pensaria depois. "Não posso te mostrar. Tentarei te levar até lá. Este texto não será um poema, uma ficção nem uma aula. Antes de tudo, será uma provocação..."
       Seguiu sem saber para onde. Um espírito livre, mais até que as folhas secas lá fora, pois não ia com o vento, ia consigo. Fez-se filósofo!

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