sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Momento

No ocaso de outro dia as cinzentas nuvens de chuva turvavam ainda mais a costumeira penumbra. A garoa cerrava os olhos, comprometendo a percepção já tão prejudicada. Tudo aconteceu naquele sutil limite entre o pôr-do-sol e o acender da iluminação pública.

O passo acelerado evidenciava pressa ou atraso, características inerentes àquela cidade. Buzinas aqui, sirene ali, tudo em um oceano de "outros" tão ou mais apressados, tão ou mais atrasados, motorizados ou não. "Essa merda de farol quebrado de novo!"
No coração uma tempestade. Preocupações, sonhos, frustrações, saudades, contas, "mandei ou não aquele maldito email?". Houve um tempo no qual seria recebido em casa com queixas por sair tão tarde do trabalho. Agora a origem das queixas morava noutra casa. Amava outro. "Deve estar feliz!"
Quanta coisa havia desejado ser. Quão pouco havia sido. "Vou estudar coisas de TI. Isso dá dinheiro!" Nunca foi muito de "trabalho com o que gosto". Até ali tivera ao menos cinco profissões distintas e passara por incontáveis empresas. "Desta vez vai rolar. Está decidido. Amanhã mesmo procuro um curso!"
Estava radiante como uma criança com um novo brinquedo. Seu vício era este. Expectativas, projetos, mudanças de rumo, de estratégia, de uniforme. "Mas sinto que é agora!".
Clarão nalgum ponto distante no céu. Estrondo segundos depois. "Tá vindo o maior toró e eu ainda aqui. Preciso chegar e dormir cedo. Me preparar pra vida  nova que começo amanhã!"
Já não se via o Sol, dado o acúmulo das nuvens. "cumulus nimbus?". Ainda não se via a luz pública, só o amarelo piscante dos faróis quebrados. "É agora!"

Disparou com os olhos cerrados mergulhando na confusa mistura de garoa, penumbra e automóveis. Buzina soou alta. Já a fricção da borracha no asfalto foi quase inaudível, lubrificada que estava a área de contato pela chuva. Momento ímpar no sutil instante entre o ocaso e a luz da noite. Três metros separavam dois corações completamente estranhos um ao outro, tão intimamente conectados naquele desconcertante momento. Um disparava freneticamente. O outro parava eternamente. Garoa, sangue e olho cerrados.

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