sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

#Verborragia: Plainar

Para entender o motivo da "Verborragia" por favor leia o início do texto "Inclusão". A palavra de duas sextas atrás era "Igualdade"; Me envolvi com Amanda e travei; Não sei para onde levá-la. Uma sexta atrás deixei de selecionar palavra acreditando que seria capaz de concluir a "Igualdade". Nada. Vou guardá-la para sexta que vem. A palavra de hoje é "Plainar".

Wilson herdou o nome do avô; Herdou a simplicidade do pai; De ambos herdou o ofício: marcenaria. Não aprendeu a ler nem escrever, mas registrava poesia com as formas precisas conferidas à madeira inerte. Certa vez visitou uma casa para tirar medidas a fim de produzir um móvel sob encomenda. Foi recebido por "Dona" Carla, mãe de Artur. "Seu" João, o marido, estava trabalhando.

- Pode me chamar só de "Carla" mesmo.

- É respeito, Dona Carla. Não pode ser diferente.

A jovem senhora mostrou o local, esclareceu sobre características do móvel pretendido e se afastou para atender o telefone.

Artur, sete anos, observava o homem medir a área vazia.

- O que é isso? (apontou para o objeto nas mãos do de Wilson, curioso com a fita amarela que ele "cuspia").

Wilson gostava de criança, mas não aprendeu a ser carinhoso. Respondia tudo sempre muito diretamente, sem floreios; sempre seco; mas não era por indiferença ou impaciência; era só seu jeito.

- Uma trena.

- Pra que serve?

- Pra medir ué.

- O que é isso?

Ele estava espiando a caixa de ferramentas do marceneiro. Abriu sem autorização. O dono não protestou. Lembrou dele mesmo fazendo isso com o pai, décadas atrás.

- Isso aí é uma plaina. Serve pra plainar.

- Como é que uma coisa tão pequena vai plainar? E é pesado. Isso não plaina não!!!! (o menino tinha cara de bravo. Se sentia enganado pelo adulto. "Os adultos sempre falam besteiras porque acham que a gente não entende!", pensava)

O homem apenas sorriu; Não era dado ao diálogo; Não explicava coisas; Vinha, fazia, recebia e ia embora; Era sua rotina. Ele não aprendeu a escrever mas conheceu os números (algo imprescindível em seu ofício); não sabia ler mas aprendeu muitas palavras; ele sempre leu o mundo, escutava as conversas das pessoas, o rádio, a televisão; entendia tudo com facilidade; o mundo era uma coleção de peças de madeira que ele sabia encaixar.

- Não é "planar", garoto. É "plainar".

- É tudo igual! (o menino continuava emburrado). Isso aqui não voa e ponto! (aprendeu "e ponto!" com as broncas recebidas do pai.)

Agora o homem sorridente gargalhou. 

- Semana que vem a gente conversa.

Orçamento dado à Dona Carla. Previsão de entrega: Uma semana. Instalação no ato da entrega.

- Dona Carla. A senhora me desculpe. Mas posso trazer uma coisa pro garoto?

A mulher estranhou; não vivemos num mundo de presentes, mas o homem tinha feições bondosas; a mulher aceitou.

Uma semana depois móvel pronto, entregue e instalado. O pagamento foi por pix mesmo. Eu já te disse que Wilson entendia o mundo?

- Garoto! Abre ali!

Ele apontou o móvel que acabara de instalar. Um armário baixo, como um gabinete de pia, mas sem pia; três portas; três gavetas. O menino saiu abrindo tudo; espaços vazios até abrir a porta do meio; um pedaço retangular de madeira, estreito e muito fino e uma plaina; a ferramenta era pequena e leve; parecia feita sob medida para uma criança; duvidei muito que realmente plainasse algo. O menino ficou perplexo.

- Vem aqui e trás isso aí!

O homem estava sentado no chão. Entre ele e o menino a caixa de ferramentas. O menino entregou as peças e sentou também. O homem colocou a placa sobre a caixa, usando-a como mesa.

- Passa a mão aqui!

O menino deslizou os dedos na madeira. Parecia explorar outro planeta. Sentia a textura, as ranhuras, as ondulações. Crianças e adultos fazem muitas coisas; veem e tocam muitas coisas; sentem muito pouco.

- Você sabe o que significa "plano"? Você tá vendo como parece plano, mas quando toca não é?

O menino concordou apenas balançando a cabeça.

- Pega a plaina. Coloca aqui. Isso mesmo. Agora a gente vai empurra juntos!

A ferramenta, apesar de leve e pequena, tinha uma pequena lâmina metálica na base e removeu lascas do pedaço de madeira. O menino se sentiu construindo algo, embora fosse a força do homem que realmente moveu a ferramenta.

- Passa a mão agora!

Perfeição.

- Agora está plano de verdade. Aí está a plaina. Isso é plainar.  A gente pega uma madeira e deixa lisinha. Certinha pra fazer alguma outra coisa com ela.

O menino olhava com cara de "E daí?"

O homem abriu a caixa de ferramentas e pegou um novo objeto de madeira. Encaixou-o naquele em que acabaram de trabalhar, revelando-se a constituição de um avião. Bem; Não tinha acabamento nem detalhes; era praticamente uma cruz de madeira com duas asinhas adicionais na ponta traseira; a peça na qual trabalharam tornou-se a asa principal do objeto. Não era uma coisa bonita; era feito para ser funcional.

- Pega. Vai lá! Joga!

O menino jogou. A coisa voou.

- Tá vendo? isso aí é planar!

O menino ficou encantado. Jogou mais duas vezes e voltou para devolver o brinquedo ao marceneiro.

- É seu. Agora você sabe planar e sabe que não dá pra fazer isso sem plainar antes. Você precisa das duas coisas, das ferramentas, do conhecimento e de amigos!

Dr Artur nunca mais viu Wilson. Nunca mais o esqueceu. Entalha madeira por hobby nos finais de semana. É ortopedista o resto do tempo. Visita os pais uma vez por mês. Liga para a mãe todos os dias. O pequeno avião, muito feio, muito velho, fica em área de destaque em sua instante no consultório, ao lado da pequena plaina. Sempre olha naquela direção quando está cansado. Plana pela vida e procura levar todos que consegue. Ensina todos a plainar.

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