sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

#Verborragia: Igualdade

      Para entender o motivo da "Verborragia" por favor leia o início do texto "Inclusão". A palavra de hoje é "Igualdade".

      Amanda nasceu negra. Cresceu menina. Floresceu apaixonada por Gisele. Gisele casou com Carlos. Amanda casou com a luta. Acordava cedo para estudar na escola pública da periferia. À tarde ajudava a mãe a pagar contas fazendo bicos. À noite lição de casa em meio a fome e cochilos sentada.

      Não demorou para mudar as aulas para a noite, abraçando uma jornada de trabalho integral. Coisa comum para as pessoas de seu meio. Pouco depois a exaustão levou ao abandono de qualquer aula. Já não conseguia acompanhar. Mal ficava acordada.

      A adolescência foi cruel. A fogueira de emoções daquela idade para ela foi mais doída. Toda a mulher é cortejada. Eventualmente por alguém que já desejava com antecedência. Como ela poderia conhecer esta experiência se só recebia o cortejo de quem não lhe interessava? Toda menina se apaixona por um garoto e tudo o que precisa é ser correspondida. Todo o jovem que não é correspondido ainda tem a esperança de, eventualmente, conquistar aquele que inicialmente o rejeitou. Como ela poderia ter este tipo de esperança? Seus amores jamais eram correspondidos e não era possível expectativa de conquista. Seria -pensava- eternamente invisível para qualquer menina. Sempre, e no máximo, uma amiga. Nunca um amor.

      Abandonada a escola tropeçou na música. Um rapaz da mesma rua, apaixonado, a convidou para uma festa. "Como amiga eu vou!".

      Não gostava do rapaz, nem de festa, nem de pagode. O rapaz, Carlos o nome, tocava cavaco. Algo no som choroso parecia solitário, quase como se não fizesse parte do restante dos instrumentos. Algo daquele som a emocionou. Ficou encantada com a dança das mãos do rapaz, que nunca olhava o instrumento, só olhava as pessoas e sorria. A música vazava daquele par como um ato fisiológico involuntário. A jovem mulher de cabelo curto e gestos rudes tinha sorriso de princesa da Disney quando respondeu "Me ensina?!" à pergunta "Gostou da festa?" que, obviamente, nem ouviu.

      Carlos aceitou. Notou muito rapidamente que jamais seria correspondido. O garoto caiu na mesma armadilha emocional que torturou sua amiga a vida toda. Acolheu a moça. Tornaram-se amigos. Depois irmãos. Nunca um beijo. Nunca um toque. Ainda assim amaram mais que os personagens das músicas que tocavam juntos.

      Amanda juntou dinheiro por algum tempo e comprou um cavaco usado. Vez ou outra se apresentava com Carlos. Vez ou outra o substituía. Seu trabalho era de segunda a sábado, tornando um problema as festas de sexta à noite, ainda assim se esforça muito para manter as duas atividades.

      "Vocês vão acabar casando!", decretava a mãe. Amava a filha, mas era mulher simples. "Não seria capaz de me entender!", imaginava Amanda. O pai nunca disse nada, fosse sobre isso, fosse sobre qualquer outra coisa. Nunca ouviu a voz do pai. Dele só sabia que certa feita anunciou à mãe "Não sei nem se é meu!" e nunca mais deu notícia, embora nunca tenha saído do bairro. Não importava. A mãe era forte. A filha era forte. Seguiam a vida como podiam.

      Cortes na "firma" esfregaram (de novo) na cara a dura marca que era a cor da pele. Trabalhava mais; dispersava conhecimento; recebia menos; não reclamava. Nada disso evitou que seu nome fosse o primeiro na hora de conter gastos. A informalidade da empresa pequena garantiu novo golpe quando descobriu que não receberia valores rescisórios, tampouco seguro desemprego. Recebeu inseguro desespero.

      Por uma semana continuo acordando cedo para ir para a praça chorar. Por uma semana não teve coragem de anunciar a situação à mãe. Vergonha, decepção e mais vergonha. "Vou vender o cavaco!". Carlos impediu. Redobrou a atuação nas festas, mas a paga era pouca. "Pagode não vale nada!". 

      Numa terça à noite, chuvosa e fria, entrou num bar. Desistira da vida. Estava decidida a ser como tantos outros, mergulhando sua ruína em copos de bebida até que a dor pudesse ser amortecida. Dois passos para dentro do local bastaram para reconhecer o pai, o homem sem voz, sempre visto de longe, apontado pela mãe sob acusações de "Ó lá o vagabundo!". Sentiu um estalo no coração; uma coisa quebrando, mas não era ruim. Era como se o coração estivesse envolto em pedra ou gelo e um esforço maior tivesse arrebentado a casca: "Me recuso a virar esse cara!".

      Saiu do bar sem ter bebido nem mesmo água; foi para casa explicar a demissão à mãe; choraram juntas; nenhuma crítica, apenas encorajamento. "Mãe, não é só isso. Eu não gosto de meninos". A senhora simples enxugou as lágrimas e se endireitou. Tinha algo sério a tratar. "Oxi. Quando eu te amei pela primeira vez o seu nome era 'João', porque eu achava que era menino. Você era minha filha antes de ser 'Amanda'". Não chorou e não deixou a filha chorar "Isso aí é você. Não há de ter vergonha nem tristeza." 

      No dia seguinte o mundo parecia igual ao que sempre foi, mas Amanda não era igual, nem ao mundo, nem ao que sempre fora. Melhor seria que seu nome tivesse sido "Coragem"; "Coragem Determinação da Silva". Nunca foi à qualquer igreja: "Se mamãe é por mim, quem será contra?". Um dia inteiro procurando emprego sem sucesso, nem almoço, tampouco desapontamento. Era sexta. Â noite foi pro pagode. Tocou sem olhar o instrumento. Mirava os adjacentes e sorria. Carlos se impressionou com o ato, algo fisiológico, praticamente involuntário. Na mesma noite conheceu Gisele, amou Gisele, mas ela foi embora com Carlos (naquela dia e para sempre). Carlos que amava Amanda que amava Gisele que amava Carlos. Um triângulo de amor, amizade, cumplicidade e respeito. Havia um "quê" de perda, mas viviam com paz no coração. A paz caiu nas mãos, a música pareceu prece, o bar ficou sem espaço. Foram pra quadra da escola, depois pro palco no bairro nobre, depois pra televisão no sábado de manhã. "Amanda, vem pra frente um pouquinho!". Amanda sempre ficava escondida. Preferia que o espaço fosse todo de Gisele, "A serei mais linda da mundo, que cantou e enfeitiçou meu coração num segundo…", pensava Amanda e traduzia a composição. O apresentador foi logo discursando em sua quase homenagem "Amanda nasceu negra. Cresceu menina. E agora é essa fera do cavaco e da poesia. A prova viva que esse é o país da igualdade!"

      Ela sorriu com todo o amarelo da vida dura e plenamente desigual que antecedeu aquele momento. Depois sorriu melhor pelo alívio da ideia de superação. Depois chorou a dor de pensar em todas as "Amanda's" que não teriam a mesma sorte. "Igualdade só se for na dor" seria o nome de uma composição futura, não fosse o veto do empresário pela falta de apelo comercial. Escutou tanto absurdo na vida que um "Ôh minha pretinha. Muda o nome. Por mim. Vem na do tio que cê passa de ano!" pareceu até cômico. Depois disso, com o sucesso e a publicidade (inclusive de coisas que queria manter pessoais) o padrão de assédio mudou. Deixou de ser invisível. Teve todas as mulheres que quis. Não amou nenhuma. Queria ser invisível. Conheceu a voz do pai quando este lhe foi pedir dinheiro. Pensou em ser melhor e maior que ele, estendendo a mão. Durou três segundos. Depois pensou "Foda-se", disse "Não sei nem se você é meu pai!" e levou a mãe pra morar em outro lugar.

      Não esquecia a visita ao programa de televisão: "Porra bicho. O cara disse 'A prova viva que esse é o país da igualdade!'. Que 'igualdade' parceiro?". Sentia-se engasgada com algo que impedia a respiração e não conseguia expelir nem exprimir: "PORRA BICHO!". 

      Teve acesso à bebida; teve acesso às drogas; rejeitou todos "Essa igualdade não parceiro!". Voltou pra preferia levando música; criou um projeto que foi depredado três vezes; na quarta, uma tentativa de incêndio quase atingiu os instrumentos musicais que doara, mas "Graças a Deus!" o fogo foi extinguido em tempo. Ao mesmo tempo famílias "de bem" das adjacências davam "graças a Deus!" pela destruição que seria garantida na quinta. Graças à polícia não teve quinta vez. Amanda não gostava da polícia. Cresceu sob o medo destes executores de "justiça", da constante caçada à cor de seus iguais e da constante desigualdade na forma de tratar a população. Não sei se por medo da opinião pública naquela noite agiram, chegaram rápido ao local após denúncia por telefone e prenderam três respeitáveis moradores do centro, um deles pastor, com meio galão de gasolina em mãos (a outra metade já derramada nas dependências do "Centro Amanda Silva de música e igualdade").

      Nunca mais ninguém tentou nada.

      Amanda escreveu sobre respeito, tolerância, amor, acolhimento; nunca escreveu sobre igualdade. Como poderia? Nunca foi igual; nunca se sentiu igual; cor, origem, opção sexual, estudos, gosto musical, etc. Esteve sempre fora do comum; alheia aos infinitos iguais que deixam este mundo tão cinza. Uma vez leu em algum lugar que o cara da história "…Era um coisa cinza rastejando num mundo cinza; Era perfeito em sua tosca harmonia com a alteridade, império da ausência de cor.". Ficava se imaginando no lugar daquele cara. Ela não era cinza mas o mundo era um estranho mar de cinza no qual ela não se diluía (e não queria se diluir). Não lembrava o fim da história do sujeito. "Acho que ele apenas sumiu! Não vou sumir não!"

      Tentou escrever um livro: "Isso não vai rolar!". Sua alma era agitada e se expressava em fragmentos. Coisas curtas tinham um sentido interno que fica perfeito na música; tentativas de algo mais longo viravam um emaranhado sem conexão. Nada de livro; nada de igualdade. Quando a mãe faleceu, anos depois, notou que nunca a havia homenageado; chorou amargamente por isso; sentiu-se igual a tanta gente que só reconhece o valor do outro na perda; compôs uma canção com este nome: "Igualdade". Falava da mulher simples que não era igual a ninguém no amor pela filha, a mulher que lhe ensinou que seu valor vinha do seu próprio "nunca ser igual" e de como era com isso, com essa diferença, que aquela menina teve a chance de crescer e lutar por igualdade para os outros. Essa música tocou o mundo como nenhuma outra; uma explosão de sucesso e críticas; era ímpar; a perfeita "obra prima"; o país se reconhecia no lamento, no desalento, na insistência e na luta. A canção de homenagem virou hino de protesto; o hino ganhou o mundo; "Amanda nasceu negra!" virou nome de documentário.

      Amanda cresceu menina, se apaixonou por Gisele, flertou com a música, se casou com a luta, morreu cercada pela família emprestada, filhos e netos de Carlos. Não foi igual nem na morte, pois sorriu e cantou, sem praguejar nem temer; em seus últimos momentos segurou forte a mão da velha amiga, "Te amo Sereia!"; apertou mais forte ainda a mão de Carlos "Te amo meu irmão. Obrigado pela festa!". Fechou os olhos como que decide forçar um cochilo.

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