sexta-feira, 11 de março de 2022

#Verborraria: Sandália

 Para entender o motivo da Verborragia clique aqui (Por favor Participe! É grátis e fará um [pseudo]autor muito feliz!).  A palavra de hoje é "Sandália".

"EU NÃO SOU MEU PAI!"

Foi o protesto de Marquinhos enquanto projetava o embrulho semiaberto para o outro lado da sala.

A mãe, em prantos, apanhou o objeto -que deveria ser um presente pelo aniversário de 16 anos- e se retirou sem falar mais nada.

Marquinhos ficou sozinho na sala e também chorou enquanto notava o quanto deve ter magoado a mãe.

Era exatamente o que prometeu a si mesmo nunca vir a fazer.

"Eu estou virando aquele bosta."

Do pai ele lembrava três coisas:

1. Se chamava Marcos

2. Imagens dele fazendo sua mãe chorar.

3. Quando ele tentou retomar o contato, dois anos atrás, usava sandálias.

"Mãe?"

Ele começou a procurar pela casa, desejando pedir perdão. Sua reação foi irracional e ocorreu assim que abriu o pacote o suficiente para notar que continha um par de sandálias. Queria tentar falar para a mãe sobre "gatilhos", alguma coisa lida aleatoriamente na internet e que parecia caber ali. Ao mesmo tempo se odiava pensando que gatilho nenhum, ou seja lá o que mais, justificava a sua atitude. A mãe era pura ternura e amor.

Nos anos entre a partida de seu odiável xará e aquele sombrio aniversário só lembrava de paz, segurança e acolhimento. O jovem rapaz tinha quase certeza que era uma boa pessoa; tratava bem a mãe, com respeito e carinho, e era (ou procurava ser) profundamente responsável em seus relacionamentos.

"Eu não sou meu pai! Que merda. Que merda!"

Ele ficava com aquela frase ecoando na mente enquanto continuava andando pela casa. Ela não estava em parte alguma.

"Meu Deus. Ela me abraçava para me proteger dele! Quem vai protegê-la de mim?"

Ele sabia que o abraço da mãe não era unilateral. Ao mesmo tempo que o protegia ele sentia que ela procurava abrigo, por mais que tentasse não demonstrar.

"Quem vai protegê-la de mim? Onde ela encontrará abrigo agora?"

Ele se torturava. Andou pelo quintal, olhou um quartinho nos fundos onde guardavam tranqueiras; olhou a garagem sempre sem carro (mais tranqueiras).

"Meu Deus. Onde ela encontrará abrigo agora?"

Foi pra rua sem notar que estava descalço. Andar descalço não era um hábito. Era praticamente um nojo. Estava sempre de tênis ou chinelo, mesmo dentro de casa. Chinelos até na hora do banho.

"Quem vai protegê-la de mim?"

Só tinha lembranças da mãe procurando abrigo no abraço dele e mesmo estas eram muito antigas; Fazia muito tempo que ela não precisava procurar abrigo.

"Meu Deus! O que eu fiz?"

Ele não conseguia imaginar para onde ela poderia ter ido. Não havia parentes ou amigos próximos.

"Meu Deus! O que eu fiz?"

Pisou numa pedra e se deteve. Não chegou a feri-lo, mas doeu. Chorou um pouco mais, desprezando qualquer vergonha dos transeuntes e esquecendo do nojo que tinha do toque do chão. Talvez teria sido útil estar com sandálias naquele momento.

"Cadê você, mamãe?"

Andava descalço; Pisou mais duas pedras; a terceira fez um corte no pé direito, fazendo-o pisar apenas com o calcanhar enquanto andava; Com um sorriso amarelo desejou ter um par de sandálias e um cajado.

"Mamãe. Me perdoe."

Contornou o quarteirão sem encontrá-la; Não sabia mais para onde ir; Dali pra frente as chances de seguir a mesma direção que ela poderia ter seguido eram remotas.

Em sua mente pedia perdão incessantemente ao mesmo tempo que sentia que os caminhos (tanto a rua que havia entrando quanto os pedidos de perdão) estavam errados.

A tal palavra "gatilho" incomodava, mas conseguia compreender superficialmente o conceito.

"Se até eu, tão cuidadoso, tão supostamente consciente, fiz o que fiz, qual o poder dessas coisas numa pessoa despreparada?"

Lembrou uma quarta coisa sobre o pai. No meio do ódio que lhe fez não ver nem ouvir quase nada havia palavras que se repetiam:

"Meu Deus. Onde vocês encontrarão abrigo? Quem vai protegê-los de mim? Meu Deus! O que eu fiz? Meu filho, me perdoe. Meu filho, me perdoe!"

Chorou pela mãe; chorou mais ainda por si; chorou muito pelo pai.

Enquanto mancava e chorava notou que as pessoas já se desviavam do seu caminho; ninguém tinha interesse no motivo de suas lágrimas; ninguém se importava; ninguém o acolheria.

"Eu te perdoo pai. Será que ainda pode me perdoar?"

Com a vista turva pelas lágrimas já não tinha mais certeza de quais caminhos havia tomado.

"Eu te perdoo pai. Será que ainda pode me perdoar?"

Com o coração turvo de arrependimento não sabia mais o que fazer.

"Eu te perdoo pai. Será que ainda pode me perdoar?"

Com o coração limpo pelas lágrimas virou uma última rua e topou com uma praça.

Uma mulher chorava copiosamente enquanto buscava abrigo no abraço de um homem calçando sandálias. A mulher de costas para ele; o homem de frente, mas com olhos fechados. Parecia uma ilha de afeto e acolhimento.

O homem, que parecia ter chorado há pouco, abriu os olhos sem largar a mulher e notou o rapaz. O pacote estava ao lado deles, sobre uma mesa de concreto na qual existiam ladrilhos incrustrados formando um permanente tabuleiro de xadrez.

Com muita suavidade e ternura afastou a mulher, levando-a a olhar em direção ao rapaz. Três cachoeiras, duas imóveis, perdidas, sem saber como reagir. A terceira cachoeira pegou o pacote e andou até o rapaz, se ajoelhou e o calçou assim que havia terminado de limpar o ferimento com meio pedaço de um lenço que havia acabado de rasgar e abraçar o peito do pé com a outra metade.

Ele se levantou e repousou a mão sobre o ombro esquerdo da rapaz.

"Vai garoto. Como sempre tudo o que ela precisa é do seu abraço. Não tem lugar para palavras aqui."

O jovem rapaz correu como criança e abraçou a mãe como quem não a encontrava há anos. Talvez fizessem mesmo anos que não se encontravam com tão pura afetuosidade, dadas as mudanças que o ato de crescer causavam.

Marquinhos desejou acolher a terceira pessoa no mesmo abraço mas quando se virou o homem de sandálias já havia partido. Tentou abrir a boca para se desculpar mas a mãe impediu.

"Não tem lugar para palavras aqui."

O jovem de sandálias e sem cajado caminhou para casa abraçado à mãe. Não se sabia quem apoiava quem. Não importava.

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