sábado, 30 de julho de 2022

#Verborragia: Inusitado

 A palavra de hoje é "#INUSITADO". Palavra escolhida por @tiazenilda e texto composto ao som de Take Five .

Noite de chuva densa e ambiente quente, perfeita para qualquer sexta no início do verão. Inusitado ser terça em pleno outono.

Dave (batizado David; mas os amigos decidiram que era "Dave", dado seu fascinio por "2001, uma Odisséia no Espaço"), que só ia ao bar em finais de semana -e mesmo nestes apenas quando chamado por amigos- inusitadamente foi na terça; inusitadamente só.

No "Recanto do Rock" havia música ao vivo todos os sábados. Queen, Beatles, Nirvana e "Toca Raul!". Na terça quatro rostos simpáticos recém saídos de uma máquina do tempo -a julgar pelos trajes - demonstravam seu entusiasmo por Dave Brubeck Quartet.

"Coisa inusitada!", pensou Dave, ouvindo o som enquanto descobria onde acomodar o raramente utilisado guarda-chuva.

"Preciso consertar isso!", pensou lutando com objetivo que só recordava estar com defeito quando chovia.

O desconforto dos pés e barras da calça encharcados foi esquecido no primeiro gole de vodca pura servido por Walter sem ser pedido.

"Tudo bem aí, parceiro?" perguntou enquanto entregava o copo. "Hoje não é seu dia aqui.". Sorriu e piscou um olho para evidenciar que não era uma queixa.

Dave sorriu de volta. Não saía às terças; não bebia na semana; não gostava de andar quando chovia.

"Não sei, parceiro. Não sei mesmo. Manja aquele papo de 'Eu bebo pra esquecer!'? Nem o que esquecer eu tenho. To de boa!"

Walter devolveu um olhar desconfiado. 

"Palavra! Contas pagas; serviço em dia; férias chegando. Tô em paz. Nada de que reclamar!"

"Tô aqui, irmão. Querendo conversar, 'É noís!'"

Enquanto este se afastava fisicamente para atender outros no balcão, aquele se afastava espiritualmente, vasculhando o coração em busca de motivos.

"O que estou fazendo aqui?"

Depois do segundo copo (cada copo uma dose dupla) pediu água. Bebeu devagar, como se degustasse, mas era a própria subjetividade que estava saboreando.

"O que estou fazendo aqui?"

A música quase frenética dava o tom e o ritmo das investigações. Terceiro copo. A chuva lá fora era inaudível, assim como as conversas e risadas adjacentes; sentia-se em outro mundo; apenas ele, o copo e a música.

O quarto copo não veio de dentro do balcão, veio de alguém ao lado.

"Olá. Posso sentar aqui?", alguém perguntava enquanto realizava o ato.

A moça tinha consigo dois copos idênticos; reteve um para si enquanto deslizava o outro na direção de Dave. Não estava em sua rotina ser abordado assim. Não tinha certeza de como reagir.

"Isso é inusitado!". Ele acreditou ter apenas  pensado, mas a moça riu.

"Me desculpe. Claro. Sente-se. Eu sou o Dave!"

"Eu já estava sentada, Dave!"

Os dois riram.

"Eu sou Amanda!"

Ele aproximou o copo dos lábios devagar o suficiente para tentar descobrir o conteúdo pelo olfato, mas não conseguiu. Obrigou-se a beber: vodca.

"Estou certo que sim!" foi o que disse! "Puta que o pariu. O que há comigo?" foi o sentimento.

"Como assim?"; Olhar levemente sem graça.

" 'Amanda' é a aplicação do substantivo 'Amor' como adjetivo para o que ou quem está sendo amado ou que deve ser amado ou que merece ser amado."

Um sonoro "Wow!" veio do outro lado.

"Puta que o pariu. O que estou fazendo?", pesou novamente; "Me desculpe se me excedi.", é o que falou.

Ela sorriu. Olhar baixo, focando algum vazio na direção do copo. Mão direita tirando o cabelo da frente do rosto.

"Por que vodca?", ele perguntou tentando quebrar o silêncio.

"Por que jazz?", foi o que ela devolveu.

"Foi um acidente. Eu nunca vim aqui numa terça!"

"Não foi acidente. Eu perguntei pro Waltão o que você estava bebendo."

Agora o sorriso sem graça foi dele.

"Desculpe se me excedi.", foi a reação da moça.

"Por que alguém faria isso?"

Ela pareceu não entender a pergunta.

"Por que descobrir o que eu bebo? O que estamos fazendo?"

"Nunca vi você aqui. Achei inusitado. Gosto de coisas inusitadas."

A risada dele, agora, teve meio tom de nervosismo.

Dois copos vazios foram substituidos por dois preenchidos, ainda que ninguém pedisse. Ainda que ninguém notasse.

"Um brinde…" disse ela

"… ao inusitado!" completou ele.

O resto é música.

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