sexta-feira, 16 de setembro de 2022

#Verborragia: Alma

Para entender o motivo da Verborragia clique aqui (Por favor Participe! É grátis e fará um [pseudo]autor muito feliz!).  A palavra de hoje é #Alma.

"Há uma imensa chance disto estar errado!", protestou Camila com semblante de censura.

"Ah! O mar está sempre certo!", insistiu Berenice.

Mostrava uma carta de algum tipo de tarot desconhecido; nenhuma palavra escrita ou numeração, apenas o desenho de ondas em um mar revolto.

Camila acabara de conhecer Alberto nos corredores da faculdade; ela passava por ali rumo à biblioteca, que nunca deixou de visitar, mesmo depois de graduada; ele tentava, pela terceira vez, aprovação no processo de uma pós graduação stricto sensu.

"Meu Deus do céu, o que estou fazendo aqui?", perguntava-se Camila enquanto esperava a taróloga dizer algo a mais.

Passara a sexta sem conseguir se concentrar no trabalho, suspirando pelas lembranças da noite anterior e ansiosa (leia-se "quase com uma crise de ansiedade") pelo reencontro; abordada por uma colega -Lourdes- que notou sua distância, contou sobre o curioso encontro: o esbarrão nos corredores digno de comédia romântica, o comentário sem pensar sobre o titulo do livro que caiu no chão, a conversa regada a café até onze e meia da noite, a sensação -inédita na vida- de plena conexão, embora não tenha ocorrido qualquer insinuação, flerte ou toque; nem mesmo um aperto de mãos na despedida.

Lourdes forçou a moça a visitar a mística, desprezando completamente o ceticismo profundo de suas argumentações.

"Essas coisas não acontecem todo dia. Se o que você disse é verdade, só a Berenice vai saber te explicar o que acontece", encerrou enquanto dava o endereço e anunciava que já tinha agendado a consulta em nome dela.

"O que você está fazendo aqui? Procurando as respostas que os livros não deram."

Camila permaneceu muda; como a mística sabia sua pergunta? E como soube da biblioteca? Será que Lourdes havia repassado a história?

"Tá tudo aqui, senhorita!"

Outra coincidência; "senhorita" foi o termo empregado por Alberto a noite inteira; "Tá tudo aqui. senhorita!" foi a expressão exata que ele emitiu quando apontou o parágrafo que solucionava um ponto sobre o qual haviam divergido.

A mística apontou uma das três cartas que havia colocado sobre a mesa; uma cordilheira de montanhas com forte neblina no topo:

"Vocês dois buscam conhecimento; cada um ao seu modo, buscavam saber algo que não sabiam; não sabiam nem porque procuravam, mas não podiam parar."

Apontou a segunda; uma floresta de árvores com copas mais ou menos niveladas, salvo a presença de duas araucárias que se sobressaíam bem no meio de tudo:

"Todas as vidas estão conectadas pelas suas raízes; nenhuma é individual; mas vocês dois são diferentes dos outros; e são iguais entre si; uma coisa de alma; mas tudo se decide aqui, nesta carta, no mar..."

Apontou a terceira carta e se calou uns instantes, parecendo mergulhar na imagem da carta:

" O oceano tem infinitas praias, mares, ondas, correntes, mas é um único oceano; ele é muito antigo; ele viu tudo; ele lembra de tudo; as correntes representam cada vida individual, mas não é a primeira vez que vocês se encontram; é uma coisa antiga; uma coisa de alma."

"O que isso quer dizer? Ele é minha alma gêmea?" e então Camila se fez mulher; baixou a guarda; despiu-se do ceticismo e quase chorou, lembrando de cada "É ele!" que havia conhecido e, no fim, não era.

"Que besteira é essa, senhorita? Alma gêmea? Bobagem. Olha o tamanho do mundo. E esse é só um. Você acha mesmo que você vai passar por todas as vidas, todos estes mundos, todas as praias, abraçada com essa única onda? Quê pesadelo isso, hein". A velha riu.

"O que é tudo isso então?"

" Vocês tem passado juntos; isso faz vocês terem futuro juntos. Coisas para resolver ou coisas para construir."

"Não entendo!"

A velha olhou pra cima, como se fosse possível ver o céu através do teto:

"E agora minha gente? Ela não entende."

Sacou uma quarta carta; uma que mostrava vapores saindo de um lago; parecia uma fonte termal.

"É, senhorita. É coisa de alma. Vocês se conhecem de outras vidas, se você precisa mesmo que eu fale desse jeito. E vocês tem algo pra fazer juntos agora! Nessa vida. Mas vai ser algo tranquilo. Algo terno."

"É ele?"

A velha mulher tirou o olhar da mesa e mirou profundamente o olho da jovem; não era mais uma mística; era apenas uma pessoa comum, compreendendo por simpatia, sem artimanhas ou mágicas, a profunda busca que tantas gentes realizam; compadeceu-se; não era necessário perguntar " 'ele' o quê?"

"Pra isso não vou tirar carta, senhorita. Suas decisões tem que ser suas, não do papel. Você é livre. Só precisa saber que, independente do caminho que escolha, vai ser terno."

Parou um instante, como se captura-se alguma informação adicional.

"Diga que eu mandei um abraço."

Antes de Camila ter tempo de emitir o "Como assim?" que lhe saltou da mente, teve a atenção evocada pelas notificações do celular. O nome "Alberto" piscava na tela.

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