quarta-feira, 2 de novembro de 2022

#Verborragia: Nós

A palavra de hoje é um desafio, pois na verdade são três: #Nós, #Cheiros e #Paraíso. Foram indicadas pela  Dulce Colorine (@etezinia) e eu agradeço.

Cheiros em confusão provocando à vida. Na soleira da porta o convidativo aroma de café na cozinha disputava a atenção com o terno cheiro de terra molhada na área externa. Amanda não gostava de café, mas adorava o cheiro. Preparava-o todas as manhãs por amor; para o amor. Carlos nunca pediu; nunca cobrou; mas sempre agradeceu profunda e sinceramente, ciente do significado do gesto.

Naquela manhã discutiram sobre o conceito de "significado", ao mesmo tempo que alternavam entre isso, elogios ao café e convites mútuos para caminhar na chuva. Não era exatamente chuva, mas sim uma suave garoa, perfeita para um passeio naquele quente final de manhã.

Amanda concluiu que, compreendessem ou não o conceito de "significado", aquele momento, naquele lugar, com aquela companhia, significava "Paraíso".

Carlos ficou calado, levantou e -portando sua xícara, preenchida pela terceira vez- ficou sob o batente apreciando o horizonte manchado de garoa.

Amanda, que não levantou, bebericava chá fitando o rapaz e, eventualmente, espiando o mundo pela janela, tentando ver o mesmo que ele via, como se isso lhe fosse conferir o acesso aos mesmos pensamentos.
"Esse momento é um paraíso. Seríamos um livro? Um capítulo?  Um conto, que seja?"

A moça apenas sorriu, imaginando que ele brincava. No silêncio dela ele prosseguiu:
" Se fossemos texto, imaginação de um autor que ignoramos, estaríamos na eminência de uma reviravolta. Eu não quero a reviravolta. Quero ficar aqui, nesta página, neste capítulo. Estou feliz aqui."

A moça sorriu novamente, mas rapidamente se conteve, buscando demonstrar respeito pela preocupação do amado. Levantou-se, mas não se uniu a ele; caminhou até a janela, tomou outro gole do chá, depositou a xícara no parapeito e inalou profundamente; absorveu o cheiro de terra molhada, a garoa, o horizonte acinzentado, os pontos mais claros no céu, onde as nuvens eram mais ralas e ficava mais evidente a presença do Sol.
"O que você acha desta história?", Perguntou.
"É bela. É tranquilo aqui."
"Essa casa não é nossa; Nem essa paisagem; Nem essa garoa. Isso é um passeio de feriado. Esse paraíso vai ficar aqui."
"Então não é o lugar que é belo; é você que dá beleza a ele.", tentou replicar o rapaz.
"Nosso autor não é poeta. Não tente ser você também."

Riram sem entusiasmo. Cada qual bebeu de sua própria xícara e inalou mais do mundo lá fora.
"Estou presa nessa paisagem; No que vejo do mundo; Mas não posso ir até ele."
"Como não? A porta está bem aqui. Vem pra cá e passaremos."
"Agora não. Nesse instante não tenho porta, só janela. Quero ver o que ela me ensina."
"O que você colocou neste chá?"

Novas risadas.
"Eu vou envelhecer. Se é beleza que você busca, ela vai passar mais rápido que a daquela serra. Pouco depois desta garoa."
"A beleza de que falo não vem dos olhos e não vai passar."
"O que você acha dessa história?"
"Não entendo. De novo? Que história, afinal?"
"Você falou de ser bela; de estar tranquilo. Foi sempre assim?"
"Nem sempre."
"E o que foi antes?"
"As vezes dura; as vezes triste; as vezes solitária; as vezes vazia."

Ela abraçou a xícara com as duas mãos, como quando se tenta aquece-las em uma manhã de inverno, aproximou-a do rosto sem beber e apreciou o cheiro da efusão.
"Não somos um conto; somos um romance; tão longo quanto nossas vidas inteiras; capítulos inúmeros."

Ele apenas assentiu com a cabeça. Ela prosseguiu:
"Por quê você falou de reviravolta?"
"Todo texto tem reviravolta. Não quero uma aqui."

A moça sorriu como o Sidarta de Hesse e parecia, de fato, ter compreendido tudo.
"O que você vê que eu não vejo?" Carlos reconheceu o sorriso e desejou a iluminação.
"Eu vejo o romance."
"Não entendo!"
"Não vai ter reviravolta neste texto. Se nossos 'leitores' chegaram até aqui esperando uma vão se decepcionar."
"Então?"
"Então NÓS somos a reviravolta. O termo de todas as suas desventuras anteriores e todas as minhas desventuras, ocorridas quando eu era 'Eu' e você era 'Você'. A reviravolta não é o sítio, o campo, a garoa, o fim do feriado, a viagem de volta para casa, o cinza que veremos na janela lá de casa, nem nada mais. Esse capítulo se chama 'Nós' e nele ocorre a reviravolta definitiva, aquela na qual o jornada faz sentido, os acidentes se encaixam, as linhas convergem e o paraíso se instala, não na paisagem desta janela, mas em nós."

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