sábado, 31 de dezembro de 2022

#Verborragia: Vizinho (parte 2)

(se você perdeu o início desta história, entre aqui)

"Bom dia meu amor!"

Celso a beijou na testa antes dela ter tempo de levantar e correu para a cozinha para preparar o café. A vida pareceu normal por cinco segundos, o tempo que levou para a onda de lembranças do dia anterior retornar; o olhar de Vitor lhe retornava à mente sem ser evocado e disparava seu coração como se ele estivesse lá pessoalmente. Ela levantou, tomou um banho e desceu para a cozinha, onde era aguardada por café preto, ovos mexidos, algumas frutas e um sujeito sorridente. Examinou-se internamente e, subtraída a culpa pelo sentimento de traição, não sentia nada que repelisse o marido; nenhum decréscimo de afeto; correu para abraça-lo como se retorna-se de uma longa viagem.

"Nossa! O que foi isso? Eu não sabia que você gostava tanto assim de manga!"

A refeição e o diálogo foram leves.

Enquanto conversavam sobre como aproveitar o dia o celular de Julia vibrou; Susana os convidava para o almoço, alegando ter sobrado muita coisa do sábado.

"Acho que já temos um programa." , afirmou Celso em tom de aceitação.

"Acho melhor não. Já passamos o dia lá."

"Acho que fica sem graça se a gente recusar. Eles são pessoas legais.".

Impossibilitada de apresentar seu verdadeiro motivo acabou aceitando; a moça alimentou a esperança de que fosse um daqueles casos nos quais, à segunda vista, não se consegue nem mesmo detectar o que havia chamado tanto a atenção no primeiro momento.

Chegaram ao meio-dia; portavam mais cervejas, um pacote de carvão e uma sobremesa que Julia preparou durante o resto da manhã.

"Que bom que vieram!"; Susana sorria.

"Olá vizinho!", exclamou Celso assim que encontraram Vitor, novamente lutando contra o carvão.

"Vamos tentar com esse aqui. Nunca falha!"

Os homens ficaram no quintal e as mulheres na cozinha.

"Isso parece delicioso.", disse Susana enquanto colocava na mesa a travessa trazida por Julia.

"Receita da minha mãe. O Celso adora."

"Experimente isso!"; A anfitriã apontou um prato raso com bolotinhas com aspecto de "amendoim japonês".

"Uau. Surpreendente!"

"É amendoim, mas sou eu que preparo. Nunca compro os industrializados."

"Nunca vi quem fizesse isso."

"Foi ideia do Vitor. Viu uma receita na internet uma vez e quis testar. Desde então só comemos assim. Cada dia um inventa uma variação diferente."

"Muito legal. Vocês parecem muito próximos."

"Ele é minha vida. A melhor pessoa que já conheci. Não largo esse homem por nada. Vitor! Seja educado e cumprimente a vizinha!"

O ralho de Susana com o marido fez Julia notar que, inconsciente, evitara o quintal; não havia cumprimentado o anfitrião. O susto pela súbita chamada foi seguido de novo tremor interno (terreno, avalanche, tempestade) quando o homem com as mãos sujas de carvão cruzou a soleira e emitiu um distante "Bom dia Julia!"

A frieza e distância do "Bom dia..." soou para a moça como se tivesse acabado de passar horas relatando algo para alguém, abrindo o coração, e recebesse em troca um "Bacana!". Notou o absurdo da sensação, a inexistência do que reclamar ou exigir e respondeu com a mesma frieza e distância. Um "Quê" de decepção se instalou no rapaz, seguido de um evidente esforço para recobrar a distância. Voltou-se à esposa:

"Eu nunca liguei para marca de carvão, mas este que o Celso trouxe é realmente muito bom. Já podemos começar a colocar as coisas para assar."

O grupo menor complicou o processo de evitar olhares; com efeito, o grupo menor forçava o "olhar diretamente" já que os caminhos do diálogo impossibilitavam não se dirigirem um ao outro. Nenhum esforço por distância conseguiu impossibilitar a descoberta de que apreciavam os mesmos pratos, questionavam as mesmas coisas, inventavam as mesmas respostas; olhos brilhavam pelos mesmos assuntos; por longos períodos os companheiros de ambos não conseguiam nem falar.

"Meu Deus! Vocês são gêmeos?", interpelou Celso. "Faz tempo que não veja a Ju mergulhada assim numa conversa."

"Almas gêmeas!", Susana riu.

Os acusados se calaram constrangidos.

A verdade é que Julia esqueceu de evitar e simplesmente se entregou ao que queria e sentia, e o que sentia era conexão. Nenhum remorso, nenhuma culpa, nenhum sentimento ou desejo pelos quais se envergonhar, nenhum traço de ação contra seu relacionamento; ainda assim uma necessidade profunda, embora serena, de mergulhar no espírito à sua frente.

"Acho que me empolguei." Vitor quebrou o silêncio.

Continua em Vizinho (parte 3)

Nenhum comentário:

Postar um comentário