sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

#Verborragia: Vizinho (parte 3)

(se você perdeu o início desta história, entre aqui)

"Mas o assunto é interessante mesmo.", confortou Celso.

Terminaram a noite rindo navegando em banalidades.
Na segunda-feira Julia levou o marido à porta, como sempre, e o acompanhou com o olhar até sumir na curva no fim da ladeira. Uns 15 minutos depois de iniciadas suas atividades a campainha tocou.  Desceu o lance de escadas sem expectativas ou preocupações; abriu a porta da sala, que dava para a garagem, distraidamente até notar, parado no portal, a fonte de todas as suas tempestades.
O cenário era tão desconcertante que não sabia como reagir; esqueceu-se até de cumprimentar. Vitor quebrou o silêncio dizendo "Bom dia Julia", trazendo-a de volta à terra. Ela, ainda perdida, respondeu a saudação de forma quase inaudível.
"Eu descobri!", ele quebrou o silêncio novamente.
"Como assim? Descobriu o quê?"
"A solução para o seu problema."
Entre os milhares de assuntos discutidos no dia anterior Julia havia comentado sobre um casal de clientes que não entrava em consenso sobre a decoração de um jardim; a mulher, mais pragmática, pedia um jardim minimalista, que exigisse pouca manutenção e não muito colorido; o homem, caótico, enumerava uma crescente variedade de flores e arbustos, além de pedir uma jabuticabeira. Naturalmente, Julia não lembrou de ter citado o assunto, assim, quando Vitor disse "problema" ela pensou que seu problema fosse o próprio Vitor.
Dada a imobilidade e silêncio da moça o rapaz ergueu a mão direita, evidenciando algumas folhas de papel.
"Veja!"
Ela caminhou até o portão, apanhou as folhas e começou a examinar. Um conjunto de desenhos não muito precisos, mas invariavelmente criativos, sugeriam formas diversas de distribuir flores, arbustos e uma pequena árvore em um espaço em perspectiva.
"Isso... isso está ótimo. Ordem e caos simultaneamente!"
"A ideia de caos é uma ilusão. É apenas uma ordem diferente daquela que pretendíamos."
"Acho que você tem razão."
"Veja o casal que você falou. Seria impossível ficarem juntos, a menos que todas as diferenças entre eles tivessem encontrado uma ordem própria entre si."
"Faz sentido."
"Veja nós dois."
"Como assim?". A moça sentiu as pernas falharem e quase caiu, julgando-se na iminência de um flerte e aterrorizada sobre a incerteza de qual seria sua reação.
"Ora. As conversas de ontem. O caos de cada mente individual e, ainda assim, a harmonia do nosso diálogo."
Ela se sentiu um pouco mais confortável.
"Aquilo foi engraçado."
"Eu adorei. Espero que vocês passem mais vezes lá em casa."
O plural da frase a tranquilizou, restituindo a sensação de segurança do domingo.
"Meu Deus. Que falta de educação eu te manter aí na calçada como se fosse um estranho. Quer entrar?"
Ela falava enquanto caminhava na direção da sala, em busca das chaves.
"Não! Não! Claro que não.", interveio Vitor sem ser rude, mas decididamente, e incluiu "Seria desrespeitoso da minha parte. Também preciso voltar para casa. Hoje estou de home-office e está quase no horário de começar a correria."
Ela sorriu e se despediram.
Voltando para dentro ela sentou no sofá e voltou a se examinar. Havia uma mistura "caleidoscópica" de três sentimentos:
Primeiro o alívio por Vitor não ter insinuado ou tentado nada, mantendo a distância respeitosa que se deveria esperar de um cavaleiro.
Em segundo lugar a decepção pelo fato do vizinho não ter insinuado ou tentado nada, mantendo a distância respeitosa que se deveria esperar de um cavaleiro.
Finalmente, profundas vergonha e revolta contra si mesma por ter percebido a presença do segundo sentimento.
"O que está acontecendo? O que estou fazendo?", perguntava-se.
O escrutínio durou uns quarenta minutos, interrompido apenas quando o telefone começou a tocar. Era uma pessoa do escritório perguntando se ela estava bem, dada a ausência em uma reunião on-line iniciada há dez minutos. Ela pediu desculpas, correu para o escritório no segundo andar, entrou no sistema e se desculpou de novo. A reunião e as atividades posteriores mantiveram a mente distante da raiva e da culpa. Com o término do dia, a chegada de Celso deixava a mente em eco de afirmações sobre como o marido era bom e questionamentos sobre como aqueles sentimentos eram possíveis. "Explique esse caos, por favor.", ela suplicou ao Vitor em sua imaginação.
O resto da semana seguiu tranquilamente, quase no piloto automático…
Continua em Vizinho (parte 4)

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