sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

#Verborragia: Vizinho (final)

(se você perdeu o início desta história, entre aqui)

"O que foi aquilo?"

"Eu não sei; Nunca vi; nunca senti; nunca ouvi falar."

"Fale sobre o que sentiu!"

Ela deu um passo na direção dele; por um momento tudo o que existia era ele.

"Eu me senti… como descrever? Eu me senti conectada. Reconectada. Era como se reencontra-se algo perdido."

"Eu também senti isso; foi assustador."; O olhar dele espremia sinceridade, confusão e um pedido de socorro. Não eram palavras soltas de um adolescente flertando.

"Eu me senti confusa; culpada; meu marido não merece isso; ao mesmo tempo… eu não conseguia conter!"

"Minha mulher é um anjo. Ela não merece isso. Mas não foi uma decisão. Aconteceu. Como é possível?"

"O que você sentiu, exatamente?"

"Como você, me senti reencontrando alguém. Me senti em casa; instantes depois do primeiro olhar foi fácil voltar para a churrasqueira e me convencer que era bobagem; mas quando conversamos..." ele se calou. Não que precisasse procurar palavras; foi como se parasse para reviver o momento. "... quando conversamos eu me sentia... eu me sentia conectado. Era como se suas palavras alimentassem meu coração. Não. Coração não. Não é para soar romântico. Era como se cada palavra sua me alimentasse o espírito. E o conforto dessa sensação era acompanhado de um desejo urgente de devolver o mesmo."

"Continue!" Ela deu outro passo na direção dele; Uns 30 centímetros os separavam.

Ele levantou a mão; as costas do indicador e dedo médio tocaram o rosto dela, descendo lentamente da têmpora até o maxilar; depois a mão recuou sem retirar os dedos, fazendo com que o ponto de contato passasse a ser as pontas dos dedos; nessa posição a mão avançou, mergulhando os dedos como dentes de um pente nos vastos cabelos lisos, castanhos, inesquecíveis. A moça apenas fechou os olhos. "É como se tudo aqui fosse a continuação de algo; como se fossemos íntimos; como se nada estivesse errado."

Ela desistiu de tudo o que era lógico; de tudo o que era certo; deu o passo final, vencendo os centímetros que os faziam ser dois; sentiu-se pronta para ser um.

A mão foi retirada e Vitor recuou; Julia abriu os olhos, confusa, mas sem cobranças; de alguma forma compreendia.

"Eu vim me despedir, Julia!"

Ela não sabia como reagir; era um turbilhão de sentimentos, pensamentos e vontades. Ele prosseguiu.

"Eu não costumo ser romântico; não iria à porta de alguém falar de sentimentos, nem que fossemos solteiros... E não somos. Justamente por não ser romântico, eu não falaria de beleza, mesmo assim vejo alguma beleza nisso que aconteceu aqui. Mas para essa beleza continuar pura ela deve ficar onde está; deve ficar como está."

Ela baixo a cabeça e fechou os olhos, tornando impossível distinguir se fazia meio sinal de "sim" ou se apenas lamentava. Quando levantou novamente, os olhos reabertos eram resolutos; repetiu o movimento de Vitor, tocando-lhe o rosto com as costas dos dedos, retirando a mão em seguida.

"Você é uma pessoa muito digna. Só isso torna tudo aqui muito especial. Eu não acredito nessas coisas de reencontro, mas sinto forte como se fosse. Se é mesmo uma coisa destas essa despedida não é definitiva."

"Espero sinceramente que não seja. Mas, por ora, Adeus Julia."

"Adeus Vizinho!"

Vitor desceu em direção à sua casa contendo com todas as forças o impulso de se virar para um último aceno. Julia trancou o portão e entrou, rejeitando o impulso de acompanhá-lo com o olhar até que desaparecesse em seu próprio portão.

À noite Julia pediu para Celso tentar ouvi-la com carinho, por mais que soubesse que só causaria desapontamento. Celso respirou fundo, intuindo o que estava prestes a receber, e aquiesceu balançando a cabeça. Julia falava devagar, com voz trêmula, eventualmente parando para conter uma lágrima fugidia, até que Celso envolveu as mãos dela com as suas. Parecia um abraço que alcançava o corpo e o coração, conferindo à moça a paz e segurança necessárias para concluir a narrativa. Contou tudo o que sentiu, incluindo a visita daquela tarde. Quando terminou, no mais singelo "...é isso!", olhou para o marido com olhar de "Por favor! Diga alguma coisa."

Celso respirou fundo novamente e baixou o olhar, como se procurasse algo sobre mesa. Voltou-se ao fundo dos olhos da moça, sem soltar suas mãos; o polegar ia e voltava em um carinho quase involuntário.

"Eu gostei desse Vitor; dele e da Susana. Pareciam boas pessoas. Agora se demonstra que tenho um bom discernimento." tentou rir, como se aquilo fosse um tipo de piada introdutória, mas não convenceu nem a si mesmo.

"Como você mesma disse, um sujeito muito digno. O que você esqueceu de dizer -e de notar - é a moça incrivelmente digna que você é."

Ela abaixou o olhar, surpresa e encabulada. Ele trouxe seus olhos de volta, elevando seu queixo com um toque do indicador.

"Nunca desvie seu olhar do meu. Não haja como se tivesse errado; como se me devesse algo; como se não fosse digna de me encarar."

Se abraçaram por alguns minutos, em seguida ele beijou sua testa e começou a retirar as coisas da mesa, preparando-se para lavar a louça. Ela o observou em silêncio e compreendeu que aquilo era tudo. Não havia mais o que dizer ou discutir, apenas seguir.

Numa tarde de sexta-feira ruídos incomuns para o dia e horário alertaram para movimentações no bairro: alguém se mudava da casa adjacente, ocupada por tão curto período. Julia espiou pela janela e observou -simultaneamente desapontada e compreensiva- o caminhão carregando os móveis; partia o Vizinho. 

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