sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

#Verborragia: Vizinho (parte 6)

(se você perdeu o início desta história, entre aqui)

(ausência de medo,) ansiedade ou o que quer que fosse.

Sábado à tarde chegaram à porta do vizinho, tocaram a campainha e foram recebidos diretamente por Vitor. Desta vez foi impossível Celso não notar o susto de Julia, manifestado por um recuo inconsciente; notou e reservou no coração, sem apresentar queixa. Recuperado o controle a moça saudou e congratulou o aniversariante, ato repetido pelo marido. Ao entrarem cumprimentaram alguns convidados já presentes, parte já conhecida no encontro anterior, e se estabeleceram. A churrasqueira, mediante uso da marca adequada de carvão, já estava acesa há algum tempo e começavam a ser retirados os primeiros assados; Vitor passou com uma tábua de madeira contendo linguiças fatiadas e carne cortada em tiras, apresentando-a aos presentes para se servirem; Julia sentiu-se particularmente constrangida quando percebeu que o vizinho a havia pulado, servindo absolutamente todos, menos ela. A mágoa durou exatos dois minutos e trinta e dois segundos, passando ao som do "Essa é sua.", dito por Vitor enquanto segurava um prato com um conjunto de tiras da mesma peça, todas muito bem passadas, tal qual ela declarara preferir no dia em que se conheceram.

O coração foi totalmente envolvido por um calor não lascivo; não era fogo, paixão ou coisas assim, era suave e terno, delicado, compreensivo, seguro. Ela segurou o prato com as duas mãos, como quem recebe um tesouro muito valioso e frágil, e olhou Vitor bem no fundo dos olhos, totalmente despida de qualquer esforço para desviar ou disfarçar; era um olhar de entrega; um profundo ar de "desisto". Vitor pareceu compreender e retribuir, pois esqueceu de soltar o prato e também não apresentou esforço para desviar o olhar.

Nove aeons depois Vitor retornou à realidade, soltou o prato e olhou para baixo, nitidamente encabulado. Julia apenas agradeceu e moveu o foco para prato. O resto do dia correu sem novas interações com Vitor, não que o estivesse evitando, mas também não o procurava. Serviu-se de guarnições na cozinha e limitou-se e ficar sentada ao lado de Celso, ouvindo os diálogos quase ausente, rindo baixo quando algo parecia engraçado.

Voltou para casa leve. Não entendia, mas ao menos aquele dia não queria entender. Não sentia nenhuma vontade avassaladora de correr até o vizinho, apenas uma ternura imotivada. Não sentia vergonha do marido. Nenhuma centelha de culpa. Dormiram trocando carinhos e votos de bons sonhos.

No domingo ficaram em casa; algumas tarefas domésticas pela manhã, almoço solicitado por aplicativo e maratona de séries à tarde. "A semana passou totalmente tranquila, quase em piloto automático..." era o que havia para grafar aqui, não fosse a campainha tocando no final da tarde da quinta-feira.

"Boa tarde Julia. Como vai?" disse Vitor do outro lado do portão.

A tranquilidade do sábado não cedeu; nenhum tremor ou medo se instalou, embora uma vontade de correr e abraçar não possa ser descartada.

"Boa tarde Vitor. Muito bem, e você?"

"Bem também."

Ocorreu um silêncio de um milhão de anos, como se cada um procurasse a coisa certa a dizer, ciente do que sentia e, ainda assim, temendo a reação do outro. Vitor deu o primeiro passo (o segundo, se você considerar "ir até ela" como o primeiro).

"Por favor, não ria de mim e -Por Favor- não me interprete mal; eu respeito você e respeito o Celso, mas eu senti algo e preciso conversar sobre isso." 

"Por favor..." saiu vigorosamente, mas "sobre isso" foi quase inaudível, como se toda a força e coragem sucumbissem devoradas pelas sílabas iniciais. Julia tinha certeza que compreendera o assunto e, ainda assim, sentia medo de se abrir e descobrir que havia algum tipo de mal entendido.

"Fique tranquilo. Pode falar. Quer entrar?" Ela caminhou até ele e abriu o portão, mas ele não se moveu.

"Há algo aqui que eu não entendo. Sozinho eu não consigo avançar. Preciso da sua ajuda."

"O que está acontecendo?"

"Você!"

"Como eu?"

"Alguma coisa em você."

"Ainda não entendo." ela estava começando a entender, mas ainda tinha medo de estar interpretando mal; medo de concluir algo que não é.

"Puxa vida Julia. Me ajuda aqui. Isso é o mais longe que eu posso ir."

Silêncio novamente, e então…

"Eu também senti algo."

"Por favor, fale!"

"Foi no primeiro sábado. Ou melhor, começou no primeiro sábado. Algo quando nos vimos."

Continua em Vizinho (final)

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