sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

#Verborragia: Desatino

 "Um desvario!", protestou Cesar, enquanto Camila o levava para fora do escritório.

"O que estamos fazendo? Temos que voltar."

"Para onde? Por quê?"

"Ao trabalho, meu Deus."

"Você odeia aquele lugar."

"Mas tenho contas para pagar."

"Arranjemos outro emprego."

"Você é doida."

"Eu sei. Apenas venha."

Instantes antes ela havia encaminhado uma mensagem pelo sistema de comunicação da empresa, pedindo que ele a encontrasse no hall de entrada do prédio, pois precisava mostrar algo.

Meses antes o mesmo sistema tinha sido veículo de mensagens semidesinteressadas que levaram aos encontros casuais, culminando em um romance muito intenso.

Falar-se-ia de desejo, paixão, tesão, etc., mas não era o caso. Ou era. Tudo isso estava lá, mas não era apenas isso. Cada qual sentia naqueles encontros, sobretudo naqueles diálogos, algo que jamais sentira em sua vida pretérita, ainda que não fosse o primeiro relacionamento; ainda que os anteriores tenham sido muito bons, eventualmente intensos.

Já haviam escutado as pessoas falando de conexão e julgavam tê-la experimentado, em amizades, namoros, cumplicidades passadas. Quando experimentaram a plenitude de conexão, a identidade de visão de mundo, de valores, de desejos, de espanto frente às sutis belezas da existência, perceberam como o sentimento ali era único; inédito.

"Venha. Rápido. Não temos tempo. Você vai adorar isso."

Ele a seguia. Preocupava-se com o emprego, ainda assim, confiava na amada. Ele apenas seguia.

"Estamos quase lá."

Um dia antes ele havia narrado um sonho. Falou que caminhava com ela por uma rua desconhecida. Paravam em uma pequena livraria de bairro, talvez um sebo, e folheavam livros aleatórios. Num dos livros, aparentemente um dicionário, parou e leu para ela um dos significados de "Desatino":

"Entre outras coisas…", disse, "significa 'procedimento próprio de pessoa desatinada; desatinação, disparate, maluquice'. Parece alguém que conheço".

Saindo da livraria e seguindo pela mesma rua, chegavam em uma viela com uma longa escadaria ascendente; no topo, uma praça; na borda oposta da praça, o bairro inteiro se derramava em declive, conferindo total acesso à visão do horizonte, no qual um sol magnífico se punha. O céu tingido de ouro. Segurou a mão da amada e acordou.

"Precisamos voltar."

A caminhada ocorrida com ambos de mãos dadas, quase lado a lado, mas ela ia pouca coisa à frente, como se o puxasse para mostrar o caminho. Ao ouvir o protesto ela se colocou completamente em sua frente, interrompendo o movimento, e dizendo, olhos nos olhos:

"Não é possível voltar. Você deveria olhar mais o mundo à sua volta."

Ele olhou, como se compreendesse a dica escondida na frase. Estavam ao lado de uma livraria, talvez um sebo. Ele se virou para as prateleiras da frente, esticando a mão para apanhar um que, pela caba, aparentava ser um dicionário. Foi interrompido por um topa suave.

"Não temos tempo."

Ela pegou a mesma mão e continuou arrastando-o adiante.

Alcançaram um ponto no qual a rua se abria, à direta, para uma espécie de afluente. Uma rua mais estreita, como que uma viela, na qual se observava uma escadaria repleta de pichações, subindo em direção ao céu. Subiram.

No cume da escalada, uma grande praça, com árvores notadamente antigas e bancos mal conservados. Era fácil adivinhar sua beleza do passado. Cruzaram-na, atingindo o outro lado bem no momento no qual um magnífico por do Sol espalhava suas manchas de fogo laranja em todas as direções, em um horizonte totalmente desobstruído.

Segurou a mão da amada e nunca mais acordou.

"Desatino!"


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