sábado, 15 de março de 2025

#Verborragia: Espectro

 "Um espectro ronda a Europa..." iniciou Augusto, inadvertidamente, entre um gole e outro de sua caneca de Chopp.

"A não meu. Hoje não!", foi o protesto de Carina.

"Todo dia é dia de revolução!"

"Hoje eu só quero respirar!"

"Não dá para respirar enquanto estivermos nesse mundo opressor!"

"A NÃO MEU! HOJE NÃO!"

Carina se retirou, deixando pra trás uma taça semisorvida de uma mistura a base de vodca. Augusto não acreditou no movimento, fosse porque ela costumava acompanhá-lo em seus comentários revolucionários; fosse porque, acima de tudo, sabia reconhecer seus momentos de humor.

À sua frente, do outro lado do balcão, Walter observava tudo em silêncio. Já havia observado o casal em outras noites, já reconhecia seus padrões de comunicação, mas nunca havia assistido qualquer animosidade entre eles.

Ao fundo um baixo melancólico enchia o ar; às terças havia jazz.

"Mais uma, doutor?"

"Não meu amigo. Vou embora. Fecha pra mim, por favor."

"Claro. Mas tá tudo bem?"

"Eu não sei. Talvez sim."

"Quer conversar?"

"Acho que hoje não. Mas obrigado."

Pagou, saiu, não voltou por dois meses, em detrimento do hábito de ir quase toda terça; às terças havia jazz.

A ausência prolongada foi apenas de Augusto; no primeiro sábado subsequente, dia de rock, Carina apareceu sozinha, cumprimentou Walter e pediu uma pina colada.

"Tudo bem por aí, madame?"

"Eu não sei. Talvez sim."

"Posso perguntar do Guto?"

"Acho que hoje não. Mas obrigado."

Na terça seguinte ninguém; no sábado seguinte, Carina.

Pediu "Sex on the Beach" e ficou ali no balcão. Não pegou uma mesa.

"Tudo bem moça?"

"Suponho que sim."

"Quer conversar?"

"Suponho que sim."

Ele riu: "Você sabe; não posso deixar de notar que há uma ausência aqui."

Ela não respondeu, apenas olhou para Walter e depois para a taça do drink. Parecia não saber o que dizer.

"Oh Waltão! Manda mais uma aqui!", gritou alguém em uma mesa. Ele se afastou da moça para atender às demandas do seu ofício. Voltou minutos depois, determinado a repetir a pergunta "Quer conversar?", mas não teve tempo.

"Eu não sei. Eu não sei. Naquele dia. Especificamente naquele dia, eu queria algo sobre nós, não sobre o mundo. E ele queria o mundo. Eu fui embora e agora não sei como voltar.

Não sei nem se quero voltar."

"Conversou com ele?"

"Não!"

"Ele te procurou?"

"Muito."

"E o que você faz?"

"Ignoro."

"Por quê?"

"Porque ele queria o mundo, e eu queria um 'nós'!"

"Pode ser! PODER SER que ele queria o mundo, mas, se ele TE procura, ele quer VOCÊ!"

"Sei lá, sabe? Sabe quando você entra em um caminho e não sabe mais voltar? Ou quando você já está na fila há tanto tempo que não aceita mais sair? Aquele sentimento de "agora vou até o fim!"?'

"Mas este "vou até o fim!" está parecendo que vai, mesmo, causar um fim. Não?'

"É o que parece?'

"E é o que você quer?"

"Isso é que é pior. Minha resposta deveria ser um imediato "NÃO!", mas não é. Fico em dúvida."

"Sabe o que eu aprendi?"

"Diga!"

"Quando há dúvida, não há dúvida!"

Ela olhou Walter de um modo que parecia atravessar-lhe a alma, mas, na verdade, ela estava atravessando a si mesma, como se as palavras dele fossem um raio que a cortara em duas partes.

"Um espectro ronda a minha vida!"

"Essa eu não saquei."

"Não era pra sacar. É de mim pra mim mesma."

Bebeu uma outra coisa, beliscou um petisco, pagou e foi embora. Não conversaram mais naquela noite.

Na terça teve jazz, mas nada de Gustavo nem de Carina.

No sábado a moça pediu um mojito.

"Waltão. Como era mesmo aquele papo da dúvida?"

"Dúvida?'

"É. Você falou semana passada."

"Ah, sim. Se há dúvida, não há dúvida."

"Então, se eu não tenho mais certeza se o quero, é que eu não quero?'

"É um jeito de pensar."

"E o que eu faço agora?'

"Moça, eu apenas sirvo drinks. Eu não decido destinos."

"Deveria decidir."

Os dois riram.

"Ele ainda te procura?"

"Disse que me daria espaço."

"E você quer este espaço?"

"Não sei."

"Nesse momento, dentro desse espaço, você sente mais conforto ou mais saudade?'

"Conforto."

"Você quer este espaço?"

"Eu já entendi. Você deveria ser psicólogo, Waltão."

"Não sirvo pra academia."

"Não sei se entendo."

"Não é pra entender. Me diz uma coisa: Lá, naquela terça, ele te disse algo e você foi embora. Antes de sair, havia algum problema? haviam brigado? Ele te fez algo de ruim?'

"Não. Nada. Até agora eu não sei porque reagi daquele jeito."

"Se a gente falou de espaço e conforto, pode ser que ali não lhe parecia mais um lugar confortável e, qualquer coisa que ele disse, seria uma gota d'água para sair."

"É. Acho que é por aí. Fico triste por ele. Não é justo."

"Ele vai superar. Quando você chega à minha idade você aprende que a gente sempre supera. Na hora parece que é a maior dor que já tivemos na vida, mas, em algum momento, a gente se levante e segue."

"Tá filosófico hoje, Waltão."

"Imagine quando eu bebo."

Riram.

A moça nunca mais voltou, fosse terça, fosse sábado. Também nunca mais Gustavo.

"Gosto de pensar que cada qual encontrou um lugar seguro em outra pessoa. Dois novos casais, finalmente felizes, finalmente completos!"

Disse Walter, para o nada, enquanto soltava a fumaça do seu cigarro em um intervalo do trabalho.

"Quê? Falou comigo?", perguntou um cliente com camisa do partido comunista que passava naquele momento.

"Nada, meu amigo. Só estou falando sozinho. Um espectro ronda a Europa!"


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