sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

#Verborragia: Abstinência

      Para entender o motivo da Verborragia clique aqui.  A palavra de hoje é "Abstinência".

      "Isso ainda vai te matar. Pare enquanto há tempo, moça!"

      Dizia Walter (ou Carlos; ou Afonso. Ela não lembrava mais) enquanto servia a próxima dose exigida por Mônica. "Dois dedos de vodca pura" entregues pela quarta vez aquela noite.

     Carlos (ou Afonso; ou Walter. Sei lá) já estava se acostumando com a presença da moça, religiosamente toda sexta. Já se sentia moderadamente próximo e já fazia pequenas brincadeiras.

      "Você é mais forte que um touro, moça. Pra onde vai tudo isso?"

   Ela dificilmente respondia, fosse a primeira, fosse a quinta dose. Não soluçava, nem chorava; não cambaleada, tampouco gaguejava. Por outro lado, não parecia hostilizar as tentativas de aproximação do atendente do bar, por isso ele insistia.

      Afonso (ou Walter; ou Carlos. Foda-se) abria o freezer atrás do balcão 18:59. Às 19:00 a moça estava se acomodando simultaneamente à chegada do primeiro copo à sua frente. Um movimento da mão no ar, simulando rabiscos com um lápis invisível, encerrava a noite. Pagava. Partia. Nada de Mônica de sábado à quinta. Se morresse um dia desses ele nunca saberia. Um acidente. Uma mudança e "puff", ela não existiria mais.

      Não estava interessado. Não era alguém para conquistar. Não se tratava de flerte. Tudo o que ele via era uma moça muito jovem com um olhar muito velho. Dor e sofrimento que o líquido gelado não levava embora. Nada lavava aquela alma perdida. A paz era inalcançável.

      Dona Rita, proprietária do bar, ensinara ao jovem atendente que os olhos eram as janelas da alma. Não lembrava se lera na Bíblia ou numa revista. "Essa gente vem aqui dizendo que quer rir, curtir, passar o tempo. Mas os olhos. Ah! Os olhos."

      "O que que tem os olhos, patroa?"

      "Um dia, quando eu ver a coisa no teu olho, eu te digo."

      Nova sexta, novas doses, riscos no ar e "costas" sem olhar para trás. Outra sexta. E outra. E outra.

      O rapaz não bebia. Antes por simples instrução do pai. Depois por assistir o que causava à clientela. A maioria era apenas feliz e ele até tinha vontade de experimentar essa felicidade, mas a desolação de uns poucos era um risco que ele não queria correr. Mônica era uma "incógnita", palavra aprendida com Dona Rita e perfeitamente "aderente" à "caverna" de toda sexta.

      Nova sexta. Novas costas.

      Refletindo sobre a história das janelas decidiu que os olhos de Mônica eram entradas de uma caverna escura e uma pessoa sozinha e assustada estava perdida bem lá no fundo. "Como resgatá-la?"

      Nova sexta.

      "Qual teu nome mesmo?"

      Ele não teve tempo de responder.

      "Tanto faz. Toma uma comigo. Eu pago."

      "Não posso beber no trabalho, moça. E não bebo nem fora dele."

      "Hoje é um dia especial, amigo. Beba!"

      Ele pegou um copo idêntico ao dela e colocou dois dedos de água da torneira. Ela sorriu. Ele viu o nascer do sol.

      "Água da torneira? Isso ainda vai te matar, moço!"

      Ele riu. Ela pareceu satisfeita. Brindaram. Beberam. Cinco doses. Cinco brindes. Nenhuma palavra. Dona Rita percebeu que o bar não existia mais. Não ralhou. "Deixa ele. Deixa ele.". Pensava consigo ternamente enquanto atendia o resto do mundo.

      "Ooooh Waltão!!!", gritou um senhor lá da outra ponta do balcão.

      "Deixa ele, Edson. Deixa ele. Eu te sirvo hoje."

      Naquele universo particular composto por duas cavernas e dois copos nenhuma palavra era dita. Não se brindava a nada específico, ao menos não verbalmente. Walter se sentiu nostálgico, como uma saudade imediata de algo ainda não perdido. Terminada a quinta dose ela apenas largou o copo. Ele preparou a conta sem risco no ar. Enquanto ela saía ele engatinhava um aceno que nunca aconteceu. Costas sem olhar para trás.

      Nova sexta. 19:15 Dona Rita apanhou e tomou o copo sem dono e com um movimento dos lábios apontou a área molhada no balcão pelo "suor" do copo. O rapaz secou com o pano que nunca saia de seu ombro esquerdo.

      Nova sexta. E outra. E outra. Ela não voltava.

      "Os olhos, menino. Os olhos. Você não bebia e mesmo assim se envenenou pelo vício."

      "Não entendo, patroa!"

      "Você bebia as ilusões que assistia naquele olhar. Sei lá eu o que você imaginava. O que esperava. Mas você bebia. Ela era a sua vodca."

      "Eu não gosto do que sinto, Dona Rita"

    "Não é bebedeira, ou tontura, ou ressaca. Nada disso. Está nos seus olhos fundos, vazios e velhos. Parecem uma caverna. Sua alma em abstinência!"

Um comentário:

  1. Como não imaginei antes que os olhos e a alma eram tão interligados. Não só no dito popular e sim fisicamente. Não é atoa que sorrir com os olhos carrega mais significado, maior intensidade do que apenas sorrir...

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