sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

#Verborragia: Maçaneta

Para entender o motivo da Verborragia clique aqui.  A palavra de hoje é "Maçaneta".

O apartamento não era grande. Ela estava sentada à mesa na minúscula sala de jantar, separada da cozinha por um balcão. Sobre a mesa uma fruteira.

Apanhou uma maçã sem entusiasmo e mordeu.

Olhou-o nos olhos e puxou assunto.

"Você lembra aquela noite que mal dormirmos, discutindo coisas profundas?"

Ele riu. Incontáveis noites foram assim.

"Terminamos numa extremamente séria análise da figura da 'maçã'."

Ela mordeu de novo; não havia jogo. Não era um momento de sedução, tampouco convite para novas análises teológicas.

Ele tentou matar o silêncio apontando a porta fechada do quarto, visível para ambos.

"O apartamento é pequeno e mesmo assim a distância é imensa, não é? Aquela maçaneta não é inacessível. Praticamente o mesmo esforço de alcançar esta maçã."

Ela não teve como não pensar na similaridade entre os dois nomes. Ele sabia disso. Ele sempre sabia.

"Será que no princípio todas as maçanetas tinham forma de maçã? Ou será que maçãs abriam portas?"

Não era, exatamente engraçado, mas ela riu por simpatia.

"Você sabe que estou partindo, não é? E mesmo assim eu tenho um grande, infinito, apreço por você."

"Então por que não fica?"

"Você sabe porquê. Você sabe que é impossível. Eu nunca estive aqui de verdade. Já tivemos esta conversa infinitas vezes."

"Eu quero que você fique!"

Ele apontou a maçaneta; ela não se moveu.

"Nunca encontrarei alguém como você!"

"Nunca existiu alguém como eu. Você sabe disto melhor do que ninguém."

"Fique!"

A disposição dos cômodos, móveis e deles mesmos colocava a mesa alinhada ao corredor (na verdade um espaço semi-inútil de um metro quadrado) que dava acesso ao único quarto e ao banheiro. Ela estava sentada em posição que podia ver a porta do quarto mais ou menos atrás do ombro esquerdo dele. Ao som do "Fique!" ele apenas moveu a cabeça para a esquerda e ela sabia o que ele queria mostrar.

"Vá até lá."

"Tenho medo!"

"Eu preciso partir!"

"FIQUE!"

Do quarto veio o som de uma gaveta fechando com força e um grito "Desculpe. Escapou!"

Do amoroso rosto à frente saiu:

"Ele vai partir!"

"Fique!"

"Você está ficando sem tempo! O primeiro a girar aquela maçaneta decidirá tudo!"

"Fique!"

Nenhuma resposta. Lá estava ela, sozinha com meia maçã, uma maçaneta, e ruídos no quarto.

O "Fique!" não era dito, era chorado.

Quatro passos e um simples girar de maçaneta passariam a limpo a vida inteira. Se não toda a vida, ao menos aquele cenário insólito.

A porta se abriu! O tempo acabou!

"Você sabe que estou partindo, não é? E mesmo assim eu tenho um grande, infinito, apreço por você."

"Então por que não fica?"

"Você sabe porquê. Você nunca esteve comigo de verdade. Já conversamos sobre isso."

"Eu quero que você fique! Nunca encontrarei alguém como você!"

"Você mal me conhece. Nunca esteve comigo de verdade. Você ama uma fantasia!"

"Fique!"

"´Você nos colocou em um triangulo amoroso. Você vivia uma relação comigo e outra com que imaginava que eu era. Deveria deixá-lo ir."

"Tenho medo!"

"Eu preciso partir!"

"FIQUE!"

"Desculpe. É tarde para nós! Esse relacionamento escapou de nossas mãos como a maçaneta de uma porta puxada pelo vento. Eu preciso partir!"

"Fique!"

"Acabou o nosso tempo!"

Ela ficou parada frente à porta de saída, com meia maçã na mão esquerda, a maçaneta na direita e o mais absoluto silêncio em todas as direções.

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