sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

#Verborragia: Encantar

      Para entender o motivo da Verborragia clique aqui. A palavra de hoje é "Encantar".

      Olhos ardendo com o suor escorrendo por todo o rosto; corpo ardendo de calor, cansaço e euforia; corria alucinadamente, como se fugisse de algo terrível, mas nada perseguia; eventualmente uma dor maior, uma torção, ou um ápice de exaustão; em qualquer caso, todo motivo para parar ou reduzir era enfrentado com novo ímpeto para correr com mais força, como um condutor de carro trocando as marchas quando o motor "pedia" a próxima.

      Suor escorrendo por todo o corpo; Olhos perdidos entre sal, ansiedade e trevas; estava muito escuro, mas não parava; ora adivinhava o caminho por memória muscular, já que tantas vezes na vida fez o mesmo trajeto, fosse noite, fosse dia; ora ajustava o percurso quando algo do relevo adjacente se fazia notar sob ínfima iluminação da lua. Era noite de lua cheia, mas estava nublado. Eventualmente o baile celestial permitia o surgimento da rainha do céu noturno; na maior parte do tempo a escondia sob densas nuvens de provável chuva.

      Olhos escorrendo por todo o corpo; sal no suor, cansaço e euforia nas lágrimas. O corpo de rio à frente era quase visível, dotado de sutilíssima palidez que fazia quase imperceptível contraste com as trevas das duas margens; o corpo de rio à frente era quase mar, tamanha a largura de seu leito; o corpo de rio escorria para o sul; o olhar escorria por todo o percurso tentando localizar o barco inexistente, invisível, irrevogavelmente distante.

      A água doce lançada ao rosto escorria purificando o olhar; o corpo acabara de cair de joelhos num ponto que parecia praia; naquela posição a água extremamente gelada lhe alcançava as nádegas. Como por encanto uma onda de vento moveu nova fissura nas nuvens, revelando o rio em toda a sua beleza; este corria para o sul, mas é para o norte que o olhar volvia; No Encantador milagre da Lua, na encantadora visão do rio, surge a imensa balsa, lenta, mas implacável.

      Saudade escorrendo por  todo o corpo; esperança correndo por todo o olhar; à sua esquerda, poucos metros, um porto improvisado; um "semi-cais" para cargas e descargas rápidas, jamais permanência;  Por encanto obteve novo vigor, colocando-se de pé sem qualquer esforço; por amor flutuou até o cais, aguardando o atracar da embarcação. Convés deserto, salvo uma única figura, nitidamente ardente, cansada, eufórica.

     Memória escorrendo pela mente: "Você prometeu não se encantar!"; Saudade escorrendo pelos olhos "Não era possível não me encantar"; Num abraço não existiam mais nuvens, apenas um luar claro como o meio dia; o rio em chamas emoldurava o barco de madeira escura; dois entes mutuamente encantados se entrelaçavam em lágrimas e alegria; todos os braços do mundo não seriam suficiente para o desejo de conter, capturar e nunca mais deixar partir, nunca mais deixar-se ir.

      As nuvens escorrendo pelo céu cobriram a lua; o barco solitário, monótono, quase congelante, nunca cansado, escorreu com o fluxo do rio. No quase invisível cais do semi-irreconhecível rio nada mais se podia ver, mas o encanto era evidente; algo como que um canto, algo choroso mas não triste, surgindo da mata, de todas as direções, talvez uma viola, o olhar dos animais substituía as estrelas; enquanto o encanto perdurou, naquele canto lindo som soou. A magia não eram os feitos milagrosos, inexplicáveis, místicos; a magia era o encantador carinho, o toque, o olhar, a noite, o luar.

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