sexta-feira, 19 de agosto de 2022

#Verborragia: Mentira

A palavra de hoje é #Mentira.

"Mentira tem perna curta."

Disse Zeca para o nada, enquanto Walter trazia outra garrafa de cerveja. Sabia que não falava com ele; perguntou mesmo assim.

"E quem mentiu, meu amigo?"

Zeca, olhando o vazio, nada respondeu. Quem poderia saber onde estava?

Walter se afastou para seguir com seu trabalho. Muitos clientes, copos e histórias.

Zeca, no balcão, vertia a garrafa no copo, o copo na alma e a alma no nada.

Walter, do lado de dentro, assistia nostálgico aquele lento naufrágio. Aproximou-se novamente.

"Quer conversar?"

Novamente nada. Quando se virou escutou bem baixinho:

"Mentira tem perna curta."

 Voltou e insistiu.

"Conversar sempre ajuda."

O olhar saiu do vazio e voltou-se ao de Walter.

"Ela disse 'mentira tem pernas curtas', e foi embora. Bem. Talvez não tenha dito. Mas tinha um 'quê' de "Mentira tem pernas curtas' no seu olhar."

"Ok. ok. Então você mentiu?"

"Parece que sim."

"Quer falar sobre isso?"

"Quero falar sobre ela."

"Um momento!"

Walter entregou uma dose de algo à esquerda e uma comanda à direita. Retornou fazendo gesto para Zeca prosseguir.

"Ela era… não… ela é a criatura mais doce que eu conheci; ainda assim, profunda; tempestuosa. O mais puro fogo."

Walter fez um sorriso levemente malicioso.

"Não. Não é isso. Era. Merda! ELA É um espírito feito de fogo. Arde e machuca. A mais pura impetuosidade. Mesmo em tempos de paz, era pura fúria. Merda. Falei 'Era' de novo."

"Parece muita coisa."

"Um Leão. Ou leoa, no caso. Com Chamas no lugar dos pelos e determinação no lugar dos olhos."

"Como foi possível perdê-la?"

"Não perdi. Nunca a tive. Não era coisa para se ter. Era criatura livre e selvagem. Ela simplesmente esteve aqui por um momento e, então, partiu."

Walter trocou a garrafa vazia por uma cheia. Água condensada no vidro escorria como uma lágrima.

"Quer falar sobre essa partida?"

"Não tem muito o que falar. Eu menti. Ela partiu. Nem sei se uma coisa foi mesmo a causa da outra."

"E por que mentiu, parceiro?"

Zeca olhou-o nos olhos novamente. Um "quê" de dor e pedido de ajuda estava em seu próprio olhar.

"Medo! Eu vislumbrei algo magnífico e, em seguida, me vi."

"O que tem isso?"

"Eu era, ou sou, menos."

"Menos o quê?"

"Só menos." Bebeu e repetiu. "Só menos."

"Brigaram?"

"Antes sim. No ato não."

Walter levantou o indicador em posição de "Só um momento!" e passou por outros pontos do balcão entregando coisas. Felizmente a noite não estava movimenta. Era terça. Poucas pessoas e muito jazz.

Quando retornou Zeca seguiu.

"Meses antes nos estranhamos uma ou duas vezes. Mas no dia derradeiro não. No dia derradeiro nos saudamos civilizadamente, cumprimentamos carinhosamente, agradecemos o que havia de bom no passado, fizemos votos de coisas boas no futuro…"

Se calou por um momento, como se lembrasse. Como se revivesse.

"… foi algo tão terno que nos abençoamos mutuamente; Então partimos."

"Qual pode ser a mentira tão terrível que desfez um carinho desse tamanho? Carinho que estava presente até no fim."

"A Mentira! Minha Mentira! Eterna Mentira! Eu disse que não a Amo!"

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