sexta-feira, 26 de agosto de 2022

#Verborragia: Olhar

 A palavra de hoje é #Olhar.

"Me apaixonei por um olhar

Por um gesto de ternura..."

Dizia a canção no rádio do carro parado no trânsito das 18:30; Tráfego e vida inertes. 

O mundo lá fora se resumia a borrões de luz branca, vermelha, verde e amarela, emoldurados por vastas extensões escuras; a chuva extremamente densa era imbatível -não importava a brava insistência do limpador de para-brisa- e tornava impossível distinguir qualquer forma nas adjacências.

O coração, tão morto quanto o motor do carro ao lado, quase tão frio quanto a água da chuva, pareceu tomar um choque de desfibrilador quando o poeta falou "Olhar".

O sujeito, semi vazio até aquele instante, foi invadido por toda sorte de memórias, impressões e arrependimentos.

"Um olhar!", repetiu em voz baixa, mas audível, caso existisse outra pessoa ali para ouvir.

"Um olhar!" e apertou o volante com força, como se tentasse estrangular sua confusão.

"Merda!", foi o que falou. "O que é isso?", se perguntava no íntimo.

A canção deu aquela volta natural em seu próprio texto e o poeta fez eco a si mesmo:

"Me apaixonei por um olhar..."

E o coração bateu mais forte, recordando o momento do contato visual ocorrido poucas horas antes.

"O que eu poderia ter dito?"

Na mente a imagem da"beleza fria"de Amanda enquanto o "modo aleatório" do rádio fez soar:

"Onde foi que eu errei? eu só sei que amei, que amei, que amei..."

Movimento externo, aceleração tímida, avanço de poucos metros e nova estagnação; uma bozina ao longe e um "Parabéns! Agora você resolveu o trânsito, seu babaca! Como ninguém pensou nisso antes?" no coração.

Incomodando pelas músicas que perdeu e pelo sentimento que escapava voltou umas três faixas de música:

"Quem vai dizer ao coração que a paixão não é loucura?" foi o que ouviu e "que loucura é essa?" o que pensou.

Da moça só tinha duas coisas: o nome, perguntado discretamente a um colega de trabalho, e o olhar.

"Meu Deus, o que foi aquilo?"

Um olhar apenas e o mundo pareceu desabar e reconstruir-se apenas para desabafar novamente.

No prédio de cinco andares havia uma máquina de café no terceiro: servia chá, café puro, com leite e cappuccino. Uma vez por dia, no entardecer, "Jonny", para o pessoal do quarto andar, "João" para a mãe e o R.H., descia ao terceiro para apanhar um cappuccino. Era sua válvula de escape para ...

Perdão; Um momento; a buzina do carro de trás chamou a atenção para o movimento à frente; aceleração tímida, avanço de poucos metros, nova estagnação e "Cara. Que saco!"

Bem! O cappuccino era uma válvula de escape para o completo automatismo no qual a vida havia se transformado: casa, trabalho, casa, trabalho, eventualmente trânsito, em um "repeat" impossível de desativar de uma canção infinitamente chata. O líquido quente e doce representava a saída momentânea da repetição infinita, embora desconfiasse que o próprio ato (descer, pegar, mexer, tomar, voltar ao trabalho) estava se convertendo em automatismo.

Naquela tarde cinza pensou "Que tempo feio. Certeza que vai chover!" enquanto se dirigia para o hall do elevador; ao lado deste a porta corta-fogo e o lance de escadas no qual mergulhou para atingir o objetivo; foi atingido por outra coisa assim que saiu na outra porto.

Um fulminante par de olhos castanhos devastadoramente vivos conectados aos seus por segundos incalculavelmente longos; não "longos" em tom de demorado, cansativo, maçante; longos porque, em segundos, deram a sensação de se ter passado por uma vida inteira juntos.

"...é impossível explicar!", cantou ou rádio.

"O que foi aquilo?" era o pensamento. Novo movimento dos veículos. Pouco avanço.

Avançada as canções houve quem dissesse "Ai, que bom que isso é meu Deus! Que frio que me dá o encontro desse olhar..." perfeitamente no Tom.

Jonny se considerava maduro, sério, contido; Não era do tipo que se apaixonava; Não assim, num susto; Se atraía, cortejava, saía; Coisas assim; relacionamentos perfeitamente técnicos; mais automatismo.

"O que foi aquilo?"

A impossibilidade de olhar o mundo fora do carro forçava o mergulho nas imagens da memória.

Ao sair da porta no terceiro andar projetando o corpo para a direita, direção da máquina de café, Amanda vinha no sentido contrário, projetando-se para a própria direita, esquerda de Jonny, numa espécie de encontro espelhado; Foi impossível não perceber que o deslocar de rosto para a esquerda, cada um tentando manter o outro no campo de visão, também foi espelhado. Micro segundos incalculavelmente longos e já estavam de costas um para o outro, andando em direções opostas. Foi impossível cada um saber que o outro sorriu pra si mesmo.

Da máquina, enquanto esperava o preparo, era possível observar discretamente onde a mossa sentara. Perguntou o nome a outro colega que chegava para pegar um café.

"A moça nova? É Amanda o nome dela. Por quê?"

"Nada. Só para saber. Conheço quase todo mundo aqui, ué."

Quer que eu os apresente?"

"Não! Não! Já vou subir. Bom final de tarde. Fica esperto com o tempo. Certeza que vai chover."

O olhar perdido pela janela esquerda, olhando para nada, buscava aquele brilho castanho como um naufrago, exausto, quase desistindo de nadar, procura terra ou, no mínimo, algo flutuando para descansar.

"O que foi aquilo?"

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