sábado, 18 de março de 2023

#Verborragia: Amargo

 Eleanor olhou a praia uma última vez, adivinhando ser a última.

Caminhou devagar pela orla.

Estava um lindo dia ensolarado de inverno. Nenhuma nuvem no céu, mas consideravelmente frio. Já não ousava nadar, nem mesmo em dias quentes.

Olhou a praia uma última vez, mas não a via. A imagem trazida pelos olhos era quase automaticamente substituída pelo vigoroso movimento das memórias, arremessando-se em ondas contra os rochedos da sensibilidade.

Olhou a praia uma última vez e ali observou o primeiro mergulho segurando a mão de seu amado, o primeiro susto do filho recém nascido, o primeiro tubo de Amanda, a neta surfista. Olhou todos os "primeiros" uma última vez.

Retornou pelo orla o longo percurso pelo qual havia ido e retornou pela memória o belo percurso pelo qual havia vivido. Olhou a praia uma última vez; Amou cada onda uma última vez; sorriu para a brisa uma última vez.

Entrou no carro de Walter, namorado da neta, um bom rapaz, amado como se fosse um neto. Lembrou da primeira vez que o viu, disputando uma onda com "sua menina" em uma competição amadora. Partiram.

Um pouco adiante na via costeira veio o "Filho!", disse ela tocando o ombro do rapaz. "Pode parar um instante, por favor. Eu queria ver o mar uma última vez."

" Nona. Não fale assim. Certamente não é a última vez. A gente volta aqui sempre que a senhora desejar."

Ela sorriu carinhosamente; desceu do carro sem responder.

Não avançou sobre a areia. Parada ao lado do carro passou o olhar escaneando todo o panorama. Respirou fundo, mergulhando em todas as lembranças que o cheiro da água salgada lhe trazia. Voltou ao carro. "Estou pronta."

O rapaz seguiu.

"Poderia parar em casa um instante, por favor?"

"Tudo pela senhora. Sempre."

Enquanto ela descia ele incluiu "Leve o tempo que desejar. Eles sabem que o papel deles é esperar."

Dentro de casa abriu o freezer, retirando uma garrafa de vodca, colocou uma pequena dose em um copo e devolveu o restante ao aparelho.

Levantou o copo o mais alto que pôde e disse, dirigindo-se ao vazio, "Um brinde a você, meu querido. Espero que você me entenda."

Deu um gole e protestou.

"Meu Deus, como isso é amargo. Como você aguentava?"

Terminou de beber em silêncio, tentando (como tentou diversas vezes nos últimos anos) compreender o que levava seu falecido marido a apreciar algo tão amargo. Colocou o copo na pia e partiu sem lavá-lo.

De volta ao carro escutou "Está tudo bem? Deseja alguma outra parada?"

Olhou a casa uma última vez e suspirou.

"Hoje é um dia feliz. Na minha idade a felicidade é diferente do que era quando eu tinha a sua. Não entenda como um sermão. Eu não censuro as coisas que te fazem feliz. Mas parece que depois de aprender outras felicidades ainda me resta a chance de descobrir uma última forma, não?"

"Todos os momentos da vida tem sua dose de alegria e tristeza, Nona. A senhora nos ensina a compreender e apreciar isso todos os dias."

"Obrigado. Acho que já ensinei tudo o que eu sabia."

"Certamente não. Certamente ensinará ainda muita coisa."

Ela apenas sorriu. Não estava triste, decepcionada ou deprimida; também não expressava alegria ou euforia; mesmo quando parou duas vezes para ver o mar "uma última vez", como descreveu ela mesma, parecia revestida da mais absoluta serenidade.

Chegaram ao destino.

"Como você está, Nona?"

"Você dirigiu até a porta do abatedouro. Como acha que estou?"

"Eu me imagino de outro jeito, quando estiver nesta porta. Precisa de algo?"

"O tempo muda o que a gente acha dessa porta, rapaz. Muda o que esperamos da situação em que ela nos colocará."

"O que a senhora espera?"

"Paz!"

"A senhora parece em paz desde agora."

"Talvez essa porta sirva para isso. Talvez apenas ratifique algo que a gente já construiu. Ela não pode dar o que nunca tivemos."

"Adoro as palavras que a senhora escolhe. Ratifico que te desejo toda a felicidade do mundo. Sempre!"

"Obrigado, rapaz. Me deixe te olhar uma última vez."

"Por favor não fale assim."

"A boca é minha para falar como quiser."

Os dois riram. Ela desceu do carro e, com ajuda do rapaz, subiu as escadas que levavam à porta demasiadamente larga.

"Olha o tamanho dessa porta, filho! É tão fácil assim deixar uma vida para trás?"

Ele emitiu um olhar que misturava acolhimento e repreensão.

"Não é tarde para voltar."

"Não. Não. Eu escolhi. Eu estou convicta. Não estou arrependida; Não tenho nenhum motivo para estar."

"Então o que está sentindo?"

"Medo!"

"De quê?"

"De não estar completamente pronta. De estar convicta agora e desistir lá dentro. Ou de me arrepender quando for tarde demais para interromper."

"A vida é assim. É sobre medo, enfrentamento, erro, acerto. Se a história fosse perfeita não teria graça. Não estamos em um momento amargo.".

"Agora foi você que escolheu uma boa palavra. Ainda assim, me parece um pouco amargo pensar que há algo de mim que não vai cruzar esta porta comigo."

"Isso não é possível, Nona. Estaremos todos com você, sempre. E 'ele' também. Nada fica pra trás. Tudo vive eternamente dentro da pessoa que nos tornamos."

"Por que ele gostava tanto daquela coisa amarga?"

O rapaz riu.

"Talvez fosse o modo de se manter atento à doçura ao redor."

"Acha que ele pode me perdoar?"

"Nona. Ele confiava em você acima de qualquer outra coisa. Se estivesse aqui diria 'se ela escolheu, não é possível outra escolha. Eu deixaria essa mulher me guiar até mesmo cegos em um abismo.' "

Ela sorriu e então respirou, tentando conter um momento de emoção.

"Ele está aqui agora, te apoiando. Torcendo por você, como sempre, segurando alto aquele copo e gargalhando. Nona! Sua vida não está ficando para trás, está se expandindo."

Ela entrou, se entregando voluntariamente aos ritos tradicionais do caminho que escolheu. Nunca mais foi vista.

Mais tarde ocorreu uma recepção para familiares e amigos próximos. Muita gente emocionada.

Walter, o motorista da vez e neto por afeição, se levantou e pediu a palavra balançando a mão:

"Desculpem o mal jeito. Não sei se eu deveria bater em um copo ou se é apenas coisa de filme. Eu vejo lágrimas e as entendo, mas hoje precisa ser um dia feliz.

Eu passei a manhã com ela, essa mulher tão magnífica, que com tanto amor ensinou tanto a todos aqui.

Foi uma bela manhã. Nostálgica, de fato, mas bela e tranquila. Certamente não amarga.

Passeamos pelos lugares que compuseram a sua vida; disse desejar ver tudo uma última vez.

Ela deixou uma bela vida, belas histórias, muita alegria.

Deixou tudo corajosamente, sem um único traço de amargura.

Como poderia? Nunca conheci pessoa mais doce... Desculpe amor!" Amanda sorriu.

Ele coçou a garganta com um "rum rum" e seguiu:

"Espero não estar desrespeitando alguma regra de decoro, mas eu preciso falar do Sr. Paul.

Se estivesse aqui seria o único copo de vodca na mesa. Eu não gosto de vodca; não fora dos drinks..."

Alguém entre as pessoas gritou "oh Waltão; manda uns drinks aí 'panóis' ".

Ele riu.

"Ele bebia pura."

E levantou à altura dos olhos um copo de vodca , que havia solicitado um pouco antes, colocando-o à vista de todos.

"Deve ter encontrado na pureza alguma doçura que eu ainda não aprendi a localizar."

Mirava fixamente o conteúdo quase invisível.

" A pureza é uma coisa doce, e pureza foi o que Eleanor deu a todos nós, em cada sorriso, conselho, abraço e até nas broncas.

Tudo até aqui foi muito puro porque tudo foi com e por amor.

'Deixe-me ver uma última vez' foi uma coisa difícil de ouvir, difícil de entender, quase amarga, mas até isso ficou doce quando finalmente entendi o motivo.

Quando você deixa uma vida para trás você se torna outra pessoa. Cada novo passo que se dá adiante transforma o mundo todo em algo novo e te transforma também.

Ela nunca mais vai ver as praias que tanto amava, justamente porque agora todas as praias são novas.

Não verá mais a velha casa, os amigos, os familiares, porque ela mudou e nos mudou no processo, portanto, somos todos novos, comprometidos com o processo de nos conhecer novamente a cada dia.

Ela nunca mais será vista, nem lembrada, nem mesmo se tornará objeto de nostalgia das pessoas aqui, pois temos todos que mergulhar no doce processo de reencontrá-la e reaprendê-la; 

A nova jornada é de todos nós e nunca mais ninguém aqui será o mesmo, porque nunca fomos.

"Sra. Eleanor! Não. 'Sra.' Não."

Ele levantou o copo mais alto enquanto gesticulava com a outra mão para que as pessoas se levantassem.

"Nona! Amada Nona! Nunca amarga Nona!

Bem vinda à sua nova vida. Seja muito feliz. Ensine doçura ao Carlão..."

Algumas pessoas riram e um senhor grisalho na mesa adjacente corou.

"... e me avise se ele aprontar."

Todos brindaram e aplaudiram.

Eleanor abraçou Carlos e sorriu; se emocionou, mas não chorou.

Foi uma tarde encantadora.

Tempos depois ela ainda faria piadas sobre "espero ter casado pela última vez."

Para entender o motivo da Verborragia clique aqui (Participe! É grátis e fará um [pseudo]autor muito feliz!)

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