sábado, 11 de março de 2023

#Verborragia: Interestelar

 "O que é esse espaço escuro, papai?", perguntou Aisha, deitada no chão da varanda, olhando para o céu.

Não recebeu resposta.

A menina, na inocência de seus seis anos, olhava para o céu noturno apaixonadamente, como sempre fizeram seus pais. Sempre se fascinou pelas estrelas, admirando as diferentes intensidades de brilho, variações de tonalidade, etc. Não conhecia as palavras "intensidade" ou "tonalidade", mas notava os fenômenos e os comparava; não saberia te explicar o que é "deleite", mas deleitava-se com tudo que via.

Amava sobretudo a Lua; discutia com as nuvens; frustrava-se em noites encobertas.

Eventualmente cochilava ali, deitada no chão, ao relento; era comum ser gentilmente apanhada no colo e levada ao quarto. Naquela noite nada de colo; também não cochilou.

Quando via as "estrelas feias", pontos avermelhados correndo para o alto em sucessão, tapava os ouvidos, adivinhando os estrondos que se seguiam. Algumas estrelas pareciam ascender, enquanto outras caiam. Com as que caiam vinha trovão e fogo.

"Eu não gosto das estrelas feias, papai."

Uma fumaça que não era nuvem começou a turvar o percurso da luz estelar, comprometendo sua observação, mas não interrompido totalmente.

"Essa fumaça é feia, mamãe. Tira ela daí, por favor."

Algo nas adjacências havia se incendiado, projetando fumaça na direção do céu imediatamente sobre Aisha. Uma alteração brusca na direção do vento noturno mudou a direção do fluxo de fumaça, devolvendo-lhe a visão de céu tão amado.

"Obrigado mamãe. Posso dormir aqui fora esta noite?"

Uma estrela totalmente branca se moveu rapidamente no céu, em percurso que demonstrava claramente não ser uma "estrela feia". A menina sorriu. Fechou os olhos uns instantes, como fazemos quando decidimos dormir, mas não conseguiu completar o processo.

Estalos repetitivos e novas ondas de "estrelas feias" a colocaram em alerta.

"Volta logo, papai. Estou com medo."

A menina se encolheu em uma mistura de frio e medo, enquanto abraçava com força sua almofada em forma de estrela; um sorriso desbotando estampado no objeto tentava consolá-la.

"Um dia eu vou aprender a ser estrelinha. Vou poder ir abraçar vocês."

Alguns estrondos nas adjacências foram seguidos por um imenso silêncio; envolvida pelo silêncio e derrotada pelo cansaço, Aisha adormeceu.

Na manhã seguinte um pálido sol lutava para ultrapassar as nuvens, trazendo o dia com dificuldade.

Jornais ao redor do mundo exibiram imagens aéreas, provenientes de helicópteros sobrevoando uma região recém bombardeada.

Uma das imagens exibia um sobrado, do qual apenas um terço restara em pé. Uma torre de esperança observando, solitária, o mar de escombros adjacente. Era possível distinguir dois cômodos -talvez um quarto sobre uma sala de estar- e no quarto uma pequena varanda, da qual  um socorrista descia com uma escada segurando uma criança enrolada em um cobertor.

As imagens apresentavam em tempo real enquanto repórteres narravam em todos os idiomas:

"AGORA! Resgate ao vivo de sobrevivente na Síria!"

Em uma área pastoril de uma cidade italiana uma senhora chamada Sofia decidiu trocar de canal, profundamente entristecida com a imagem de tanta maldade no mundo.

No outro canal um senhor grisalho, magro e alto fala algo mais ou menos assim:

"Olha o céu à noite!

Olha!

Vê a beleza das estrelas

E da Lua

E das nuvens

Ama até o céu que não podes ver.

Depois olha de novo.

As estrelas são tão pequeninas.

O espaço escuro entre elas é imenso.

'O que é esse espaço escuro?' perguntei ao meu pai certa vez.

'Bambino! O espaço escuro é o que torna as estrelas belas.

Ele é distância

É saudade

Pode ser também morte.

Ele é, principalmente, Amor.

O espaço escuro entre as estrelas é a distância entre uma e outra

Também é o amor entre uma e outra

É a distância entre você e elas

É também teu amor por elas

É a distância entre você e eu

Também é meu amor por você.

Quando eu não estiver aqui, olha para o céu.

Veja as estrelas, a lua, as nuvens.

Mas olha mais para o espaço escuro.

É ali que eu vou morar.

E de lá te cuidarei.

Soprarei suas tristezas

Responderei suas perguntas

Dali, d'onde as estrelas não se tocam, mas se amam,

Te amarei para sempre!' "


"Para entender o motivo da Verborragia clique aqui (Participe! É grátis e fará um [pseudo]autor muito feliz! https://outrosdialogos.blogspot.com/p/verborragia.html  )

2 comentários: