quinta-feira, 24 de abril de 2025

Fenda - Parte 4: Rasgado

(caso você não conheça o início da história, por favor acesse a primeira parte)

"Garanto que não sou um defeito."

"Um defeito não saberia que é um. Ou, se soubesse, não me diria. No limite, supondo que fosse possível um defeito ter consciência de si mesmo, me garantiria que é real, para garantir sua existência."

"Como, então, eu poderia te provar que sou real?"

"Não faço ideia."

"Ora. Se você mostrar minhas mensagens para alguém, poderá provar que não estão vindo de você."

"Será? Deu certo com você?"

"Não mostrei pra ninguém."

 "Por quê?"

"Pensariam que sou louco."

"Então estamos na mesma situação. E eu não sei como te provar que eu não sou uma alucinação sua."

"É. Faz sentido. E o que fazemos agora?"

"Não sei. Conversamos? Se 'sim', sobre o quê? Ou nos calamos? Deveríamos esperar tudo isso desaparecer?"

"Não sei o que pensar a respeito. Agora que eu te conheço, como poderia simplesmente ignorar? Simplesmente calar? Simplesmente sumir?"

" Você falou de intervalos. Eu não entendo o conceito, mas me parece que basta você fazer um intervalo mais extenso."

"É o que você quer?"

"Eu quero e..."

O papel parecia rasgado bem no ponto em que a letra "e" parecia iniciar uma nova palavra. A luminescência que passava a fenda se apagou.

"Não. Não. Não é possível. O que aconteceu? O que eu disse?", Noam se questionava, enquanto tateava o fenômeno, agora não mais que uma simples rachadura. Com as pontas dos dedos conseguia sentir a textura interna da parede; a irregularidade áspera da substância com a qual se fazem os blocos e algo meio arenoso, como se o próprio bloco esfarelasse um pouco. Tentou espiar, mas não via nada, fossem os vultos de antes, fosse o lado externo de sua casa. Apanhou o celular e tentou alinhar a luz da lanterna para enxergar o interior da rachadura. Viu a câmara oca, cúbica, que há no interior de blocos, mas a face oposta estava intacta. A rachadura não atravessava a parede, por isso não era possível ver a parte externa. Pode ser relevante dizer que não havia um calhamaço de bilhetes de papel branco caídos na base da câmara cúbica. Estava vazia.

Recuou e sentou na cama atônito. Naquela confusão de sentimentos nem havia acendido a luz do quarto. Só havia a penumbra que vinha da luz da escada que levava ao quarto e o contorno do celular, lançado sobre a cama com a lanterna para baixo; esquecera de desligar.

"Esperar? Esquecer? Espaguete? O que você quer, Sofya?"

Novamente dormiu de roupa, sobre a colcha, mas antes desligou a lanterna e a luz da escada, além de colocar o celular para carregar. Dormiu embebido do sentimento de perda, sem nem entender o que havia perdido.

Na manhã seguinte acordou 30 segundos antes do celular despertar. Na mente um eco de sua própria voz dizendo "Sofya", como se tivesse sonhado algo, mas não lembrava o sonho.

O olhar foi direto para a parede. Nenhuma luz. Ainda assim a rachadura permanecia: um lembrete triste de que, o que quer que tenha acontecido, não havia sido um sonho.

Levantou e tateou novamente. Olhou para a escrivaninha e a pilha de papeletas pretas. Aproximou os lábios da ferida aberta na parede, análoga à do coração, e sussurrou:

"O que você quer, Sofya?"

Afastou-se e mergulhou na rotina. Ainda era sexta-feira.

Continua em Fenda - Parte 5 Desvio de Função

 

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