segunda-feira, 28 de novembro de 2011

#Vazio - Outra Manhã (16)

O homem de branco, congelado na porta, exibiu insegurança pela primeira vez desde sua apresentação inicial. Era difícil determinar se seguiria com o diálogo ou se sairia correndo daquele quarto. Parecia não ter o que dizer. Instantes depois, recuperou a firmeza e decisão e pediu, com um gesto, que o paciente se sentasse. Demorou quase um minuto em silêncio, como se escolhesse bem cada palavra que viria a empregar e, finalmente, iniciou seu discurso:
- Em primeiro lugar, eu quero que tenha consciência que apesar de tudo, algum progresso aconteceu, já que este foi seu menor período desacordado desde que chegou aqui.
Calou-se, provavelmente esperando que o homem ferido questionasse sobre o período, mas a pergunta não foi feita. Seguiu:
- Sua reação ao me ver, uma agressividade perfeitamente justificável, evidencia que me reconheceu. Isto é, sem dúvida, uma imensa conquista. Você esteve desacordado, se é que tal palavra se aplica, por três dias, desde nosso último diálogo. Colocando melhor, faz três dias desde que conversamos racionalmente pela última vez.
Desta vez o homem sentado não pôde manter o silêncio e questionou curioso o motivo da palavra “racionalmente”. O médico explicou:
- Bem! Nestes três dias você não manifestou níveis adequados de consciência efetiva, mas isto não significa que esteve dormindo ou desmaiado. Na primeira manhã após nossa conversa, você se levantou da cama assim que eu entrei no quarto, mas parecia não me ver. Olhava através de mim e dos móveis, como se nada disto estivesse aqui e balbuciava palavras, tão baixas que não fui capaz de identificar do que falava. Neste estado, o qual classifiquei como algum tipo de sonambulismo, em meu relatório, você apresentou elevadíssimos níveis de stress e agressividade. Andava às escuras, como se estivesse cego; projetava-se contra os móveis e paredes, quebrando, inclusive, alguns materiais, além de se ferir; lutou contra os enfermeiros enquanto tentavam te levar para a cama e produziu este ferimento na haste metálica do cinto de contenção. Fizemos o possível para mantê-lo o mais confortável possível, mas justamente para não comprometer ou atrasar este nosso novo diálogo, optei por não ceda-lo.
Marcus ficou confuso. A explicação o levou a compreender de imediato a postura da enfermeira e se perguntou se havia machucado alguém. Sentia-se girando em torno de si, pois embora os esclarecimentos prestados fossem perfeitamente verossímeis, não era capaz de aceitar que estivera fantasiando todas as demais experiências. De fato, o único ponto a favor daquela sala branca e do médico barbado era a “inconvencionalidade” das experiências no deserto e o deserto em si. Olhava ao redor, como que em busca de alguma falha naquele conjunto de experiências sensórias que evidenciasse alguma artificialidade no mesmo, mas nada encontrou. Viu-se novamente estéril de referências. Esforçou-se para não pensar em Descartes. Levantou-se e pediu ao médico autorização para ir a um espelho. O médico o acompanhou para fora do quarto. Dois jovens de branco se aproximaram. Embora a roupa sugerisse tratarem-se de membros da enfermaria, o porte dava a impressão de seguranças. Os quatro foram até um banheiro, ao final do corredor, no qual havia um largo espelho sobre os lavatórios. Ali, Marcus retirou a camiseta branca que vestia e virou-se, observando profundas feridas em suas costas. Linhas verticais da nuca até a cintura. Não se despiu mais. Não precisava olhar as nádegas e pernas. Sabia, pelo latejar da pele, que as mesmas marcas seguiam até seus calcanhares.

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