O homem de branco, congelado na porta, exibiu insegurança pela primeira vez
desde sua apresentação inicial. Era difícil determinar se seguiria com o diálogo
ou se sairia correndo daquele quarto. Parecia não ter o que dizer. Instantes
depois, recuperou a firmeza e decisão e pediu, com um gesto, que o paciente se
sentasse. Demorou quase um minuto em silêncio, como se escolhesse bem cada
palavra que viria a empregar e, finalmente, iniciou seu discurso:
- Em primeiro lugar, eu quero que tenha consciência que apesar de tudo,
algum progresso aconteceu, já que este foi seu menor período desacordado desde
que chegou aqui.
Calou-se, provavelmente esperando que o homem ferido questionasse sobre o
período, mas a pergunta não foi feita. Seguiu:
- Sua reação ao me ver, uma agressividade perfeitamente justificável,
evidencia que me reconheceu. Isto é, sem dúvida, uma imensa conquista. Você
esteve desacordado, se é que tal palavra se aplica, por três dias, desde nosso último
diálogo. Colocando melhor, faz três dias desde que conversamos racionalmente
pela última vez.
Desta vez o homem sentado não pôde manter o silêncio e questionou curioso
o motivo da palavra “racionalmente”. O médico explicou:
- Bem! Nestes três dias você não manifestou níveis adequados de consciência
efetiva, mas isto não significa que esteve dormindo ou desmaiado. Na primeira
manhã após nossa conversa, você se levantou da cama assim que eu entrei no
quarto, mas parecia não me ver. Olhava através de mim e dos móveis, como se
nada disto estivesse aqui e balbuciava palavras, tão baixas que não fui capaz
de identificar do que falava. Neste estado, o qual classifiquei como algum tipo
de sonambulismo, em meu relatório, você apresentou elevadíssimos níveis de
stress e agressividade. Andava às escuras, como se estivesse cego; projetava-se
contra os móveis e paredes, quebrando, inclusive, alguns materiais, além de se
ferir; lutou contra os enfermeiros enquanto tentavam te levar para a cama e
produziu este ferimento na haste metálica do cinto de contenção. Fizemos o possível
para mantê-lo o mais confortável possível, mas justamente para não comprometer ou
atrasar este nosso novo diálogo, optei por não ceda-lo.
Marcus ficou confuso. A explicação o levou a compreender de imediato a
postura da enfermeira e se perguntou se havia machucado alguém. Sentia-se
girando em torno de si, pois embora os esclarecimentos prestados fossem
perfeitamente verossímeis, não era capaz de aceitar que estivera fantasiando
todas as demais experiências. De fato, o único ponto a favor daquela sala
branca e do médico barbado era a “inconvencionalidade” das experiências no
deserto e o deserto em si. Olhava ao redor, como que em busca de alguma falha
naquele conjunto de experiências sensórias que evidenciasse alguma
artificialidade no mesmo, mas nada encontrou. Viu-se novamente estéril de referências.
Esforçou-se para não pensar em Descartes. Levantou-se e pediu ao médico
autorização para ir a um espelho. O médico o acompanhou para fora do quarto.
Dois jovens de branco se aproximaram. Embora a roupa sugerisse tratarem-se de
membros da enfermaria, o porte dava a impressão de seguranças. Os quatro foram
até um banheiro, ao final do corredor, no qual havia um largo espelho sobre os
lavatórios. Ali, Marcus retirou a camiseta branca que vestia e virou-se,
observando profundas feridas em suas costas. Linhas verticais da nuca até a
cintura. Não se despiu mais. Não precisava olhar as nádegas e pernas. Sabia,
pelo latejar da pele, que as mesmas marcas seguiam até seus calcanhares.
Continua em #Vazio - Outra Manhã (17)
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