terça-feira, 29 de novembro de 2011

#Vazio - Outra Manhã (17)


- Devo supor que fiz tudo isto com a mesma fivela de cinto enquanto estava amarrado ou o flagelo faz parte do seu tratamento?
A seriedade de um dos enfermeiros foi rompida com um sorriso, o qual foi abreviado pela nítida desaprovação do segundo. Com um gesto quase imperceptível do médico, os dois rapazes saíram do ambiente, deixando-os a sós.
- Compreenda que nenhum tipo de interferência física faz parte do nosso trabalho. Todas estas lesões foram-lhe infligidas por você mesmo.
- Eu jamais faria uma coisa destas!

- Também jamais se imaginou internado aqui e nestas condições, mas veja onde estamos.
- Não estou gostando disto!
- Por favor, não duvide de nossa seriedade. Não vou me eximir de responsabilidade, pois se eu tivesse sido mais atencioso com seu caso provavelmente você não estaria assim. Como eu te disse, você se projetava contra paredes e móveis. Antes de ser reconduzido ao seu leito você saiu correndo freneticamente, invadiu nossa área ambulatória e derrubou diversos utensílios de vidro. Ali você caiu no chão e se arrastou sobre os cacos. Enquanto tentávamos levantá-lo você se debatia com violência, aumentando o número e profundidade das lesões. Eu sinto muito.
- Vidro?
O médico sentiu que estava perdendo a confiança do homem:
- Por favor, vamos voltar ao quarto. Eu explico tudo detalhadamente.
Ciente que não teria qualquer outro lugar para ir, Marcus consentiu, pedindo antes para usar o banheiro. Já no quarto, o médico seguiu com os esclarecimentos:
- Veja bem! Todos estes eventos me causaram sérios problemas com a direção do hospital, colocando em dúvida tanto os meus métodos quanto a sua capacidade de reabilitação. Não poucas vezes mencionou-se tanto a minha transferência de área quanto a sua para um hospital “mais adequado”. Insisti muito por um novo prazo, assim, preciso de sua cooperação e confiança para que este nosso trabalho não vá por água abaixo.
- Isto não esclarece minhas dúvidas.
- Eu não lhe dei todos os detalhes. Eu fui contra a aplicação de sedativos nestes últimos dias, justamente para não atrasar este seu “despertar”, mas no primeiro dia você precisou receber anestesia. Nossa equipe de cirurgia demorou quase quatro horas para remover todos os cacos de vidro do seu corpo. Fizemos o melhor possível.
Marcus continuava perdido e confuso. Toda a sua racionalidade o levava a acatar as explicações do médico, mas continuava resistente a aceitar que Valdomiro era uma ilusão. Descreveu ao médico da melhor forma que pôde toda a sequência de eventos ocorridos no deserto e como todos eles se encaixavam perfeitamente às marcas em seu corpo.
- Veja! Toda a ilusão é acompanhada de ferramentas muito bem elaboradas para garantir sua veracidade. É natural que a dor sentida durante os acontecimentos aqui no hospital, profunda demais para ser meramente inibida pelo seu subconsciente, precisou ser revestida por algo que fizesse sentido naquele ambiente em que você se encontrava. Lidamos com estes mecanismos de defesa o tempo todo.
Marcus relaxou. Não que os esclarecimentos do médico o satisfizessem plenamente, mas por se sentir cansado e por terem-se esgotado as suas argumentações. Preferiu não seguir com qualquer discussão daquela natureza.
- Só sei que tenho vivido duas vidas, doutor. E isto tem sido profundamente desgastante, para não dizer doloroso.
- Sou capaz de imaginar o profundo conflito emocional no qual se encontra, para não falar da dor física. Por isso preciso que colabore comigo. Precisamos eliminar as ilusões. Só assim será possível resgatar sua identidade.
- Fico me perguntando, Doutor. Existe mesmo alguma identidade a se resgatar? Não seria este “eu” que busco, na verdade, algo a se descobrir?
O médico riu, embora não fosse possível identificar se imaginou que Marcus fizera uma piada ou se ria em função do elevado nível de consciência e racionalidade que era apresentado pelo homem que por tanto tempo assistira inconsciente ou irracional.

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