- Devo supor que fiz tudo isto com a mesma fivela de cinto enquanto
estava amarrado ou o flagelo faz parte do seu tratamento?
A seriedade de um dos enfermeiros foi rompida com um sorriso, o qual foi
abreviado pela nítida desaprovação do segundo. Com um gesto quase imperceptível
do médico, os dois rapazes saíram do ambiente, deixando-os a sós.
- Compreenda que nenhum tipo de interferência física faz parte do nosso
trabalho. Todas estas lesões foram-lhe infligidas por você mesmo.
- Eu jamais faria uma coisa destas!
- Também jamais se imaginou internado aqui e nestas condições, mas veja
onde estamos.
- Não estou gostando disto!
- Por favor, não duvide de nossa seriedade. Não vou me eximir de
responsabilidade, pois se eu tivesse sido mais atencioso com seu caso
provavelmente você não estaria assim. Como eu te disse, você se projetava
contra paredes e móveis. Antes de ser reconduzido ao seu leito você saiu
correndo freneticamente, invadiu nossa área ambulatória e derrubou diversos
utensílios de vidro. Ali você caiu no chão e se arrastou sobre os cacos.
Enquanto tentávamos levantá-lo você se debatia com violência, aumentando o
número e profundidade das lesões. Eu sinto muito.
- Vidro?
O médico sentiu que estava perdendo a confiança do homem:
- Por favor, vamos voltar ao quarto. Eu explico tudo detalhadamente.
Ciente que não teria qualquer outro lugar para ir, Marcus consentiu,
pedindo antes para usar o banheiro. Já no quarto, o médico seguiu com os
esclarecimentos:
- Veja bem! Todos estes eventos me causaram sérios problemas com a
direção do hospital, colocando em dúvida tanto os meus métodos quanto a sua
capacidade de reabilitação. Não poucas vezes mencionou-se tanto a minha
transferência de área quanto a sua para um hospital “mais adequado”. Insisti
muito por um novo prazo, assim, preciso de sua cooperação e confiança para que
este nosso trabalho não vá por água abaixo.
- Isto não esclarece minhas dúvidas.
- Eu não lhe dei todos os detalhes. Eu fui contra a aplicação de
sedativos nestes últimos dias, justamente para não atrasar este seu
“despertar”, mas no primeiro dia você precisou receber anestesia. Nossa equipe
de cirurgia demorou quase quatro horas para remover todos os cacos de vidro do
seu corpo. Fizemos o melhor possível.
Marcus continuava perdido e confuso. Toda a sua racionalidade o levava a
acatar as explicações do médico, mas continuava resistente a aceitar que
Valdomiro era uma ilusão. Descreveu ao médico da melhor forma que pôde toda a
sequência de eventos ocorridos no deserto e como todos eles se encaixavam
perfeitamente às marcas em seu corpo.
- Veja! Toda a ilusão é acompanhada de ferramentas muito bem elaboradas
para garantir sua veracidade. É natural que a dor sentida durante os
acontecimentos aqui no hospital, profunda demais para ser meramente inibida
pelo seu subconsciente, precisou ser revestida por algo que fizesse sentido
naquele ambiente em que você se encontrava. Lidamos com estes mecanismos de
defesa o tempo todo.
Marcus relaxou. Não que os esclarecimentos do médico o satisfizessem
plenamente, mas por se sentir cansado e por terem-se esgotado as suas
argumentações. Preferiu não seguir com qualquer discussão daquela natureza.
- Só sei que tenho vivido duas vidas, doutor. E isto tem sido
profundamente desgastante, para não dizer doloroso.
- Sou capaz de imaginar o profundo conflito emocional no qual se
encontra, para não falar da dor física. Por isso preciso que colabore comigo.
Precisamos eliminar as ilusões. Só assim será possível resgatar sua identidade.
- Fico me perguntando, Doutor. Existe mesmo alguma identidade a se
resgatar? Não seria este “eu” que busco, na verdade, algo a se descobrir?
O médico riu, embora não fosse possível identificar se imaginou que
Marcus fizera uma piada ou se ria em função do elevado nível de consciência e
racionalidade que era apresentado pelo homem que por tanto tempo assistira
inconsciente ou irracional.
Continua em #Vazio - Outra Manhã (18)
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