sexta-feira, 25 de agosto de 2023

#Verborragia: Serendipidade

 "Filho. Deixe lá!", disse a mãe enquanto o filho corria na direção da casa em chamas.

Ao som daquele apelo ele reteve o passo, cinco metros antes da entrada. Instantes depois a casa inteira desabou. Uma onda de fumaça, cinzas e centelhas espalhou-se em um circulo crescente atingindo-lhe os olhos e os pulmões. Afastou-se do calor e das sobras da casa arrastando-se na direção da voz que o pariu.

"Era tudo o que tínhamos, mãe."

"Não filho. Tudo o que temos está bem aqui."

A casa, agora destruída, era modesta. Uma casa simples de madeira, construída pelo avô décadas atrás. Avô e pai, já falecidos, ensinaram ao rapaz a carpintaria, a pesca e o cuidado com a terra. Gerações que faziam de tudo para sobreviver naquele canto inóspito do mundo. Não havia seca, mas a terra era dura, os peixes eram raros e os invernos, rigorosos.

Uma coisa com a qual nunca se descuidaram foi o fogo. "Um amigo perigoso!", ensinara o pai. "Cuide dele com atenção, pois assim como nos protege e nos alimenta, pode ele mesmo se alimentar de nós."

O fogo que lhes tirou tudo não nasceu do seu descuido. Veio das coníferas e cercou a casa. Nunca descobriu a origem.

Na manhã seguinte passou algumas horas revolvendo as cinzas em busca de algo.

"Filho. Deixe lá!", insistiu a mãe.

O "tudo" perdido era um totem de madeira entalhado pelo pai quando ainda criança, sob orientação do avô. Representava uma serpente enrolada em si mesma, observando silenciosa algo à sua frente. Não eram inclinados a misticismos. A vida dura minava a fé. "Os deuses nos observam lá de cima. Mas não vão nos dar nada. Temos que fazer por nós.", dizia o avô.

A serpente, por sua vez, foi entalhada para servir de lembrança de um sonho que o menino teve, no qual uma imensa serpente surgia rastejando entre escarpas, em uma montanha, mas não o devorava. Ao invés disso se enrolava ao redor dele, formando um tubo que guardava seu corpo, sem pressionar ou sufocar, e dessa forma o protegeu de uma avalanche que veio em seguida.

O avô se impressionou com o sonho, pois havia uma lenda de uma serpente protetora, ouviu ele de sua própria avó, mas nunca repassara a história ao filho.

"E o que ela te deu?" perguntou o avô.

"Nada, ué. O senhor disse que nunca dão."

"Eu havia me esquecido. A Serpente lê espiritualmente os corações e sempre protege e presenteia os puros. Você tem certeza que ela não te entregou nada? Será que você esqueceu alguma parte da história?"

"Não vovô. Eu lembro de tudo."

"Então haverá um presente. Fique atento."

O avô levou o menino a entalhar a serpente para nunca esquecer.

"Nossa vida é dura, mas os deuses vão nos proteger.".

Para entalhar a serpente o avô decidiu que não podia ser qualquer madeira. Partiram em uma jornada para o norte, para uma montanha escarpada cujas características coincidiam com o sonho do pai menino, e de onde teriam vindo os ancestrais, de acordo com o que o avô podia lembrar. Aos pés da montanha haviam árvores com aspecto de secas, que perdiam as folhas no inverno, mas nunca morriam. Fizeram uma prece de agradecimento a uma das árvores pela madeira que ela cederia e removeram um galho.

Muito tempo depois do incêndio, a mãe já falecida, o homem, filho do sonhador, ainda pensava no totem. Decidiu realizar sua própria viagem ao norte, em busca da montanha ancestral e da madeira especial para talhar uma nova serpente. Juntou suas coisas e partiu.

O norte era um pouco mais distantes do que as histórias paternas faziam parecer, não apenas porque as viagens narradas são mais curtas que as realizadas, mas porque a família foi para o sul, cada vez mais, ano após ano, em busca de condições melhores e, muita viagens mais tarde, foi que o avô construiu a casa que queimou. O próprio rapaz, depois do incêndio, moveu-se progressivamente para o sul, deixando imensa a jornada que havia à sua frente.

Viajava a pé. Não possuía cavalo. À noite dormia em um saco de couro de búfalo ao lado de uma fogueira. Quando encontrava áreas habitadas, trocava algum trabalho manual por pousada e comida. Numa dessas ocasiões ele chegou em um vilarejo poucos minutos antes de uma nevasca atingir o local. Sua decisão de iniciar essa jornada havia sido um tanto quanto impulsiva, motivo pelo qual não havia calculado o tempo de viagem, tampou se teria conseguido conclui-la antes do inverno. Não conseguiu.

No vilarejo foi acolhido por um senhor muito idoso, viúvo, que lhe pediu ajuda para consertar sua carroça. Concluiu o trabalho na mesma noite, logo após o jantar. Antes disso, durante a refeição, o anfitrião ofereceu um quarto na casa, informando que o estábulo estaria muito frio, com o tempo que fazia.

"O senhor é muito gentil e eu fico muito grato. Mas não seria respeitoso. O senhor mora aqui sozinho com sua menina. Eu sou um estranho. Vou dormir no estábulo."

O quarto que o anfitrião ofereceu era de seu filho. Estava vazio há uns anos, desde que o rapaz se casou e partiu para construir a própria família. Havia outros dois quartos, um do viúvo e outro de sua filha caçula. Era incomum ter tão poucos filhos, mas a esposa morrera no parto da menina e o viúvo nunca mais se casou.

Na manhã seguinte a neve estava espessa e o tempo fechado. Não ventava nem nevava, mas as condições não eram nada inspiradoras.

O viajante recebeu café e milho cozido como café da manhã. Em troca alertou que a carroça já estava pronto.

"Não é possível. Estou brigando com aquela rabugenta há dias."

Os dois foram ao estábulo e o viúvo verificou que o reparo era impecável. Enquanto ele avaliava o trabalho o viajante juntava suas coisas.

"O senhor foi muito generoso comigo. Eu lhe agradeço."

"Onde você vai, rapaz?"

"Seguir o meu caminho."

"Eu seria um criminoso se te deixasse sair nesse tempo. Eu sou velho. Conheço bem o inverno daqui. Melhor você ficar mais alguns dias."

"Não posso, senhor. Tenho que cumprir minha viagem. E não posso abusar da sua hospitalidade. O senhor já me ajuda demais."

"Besteira. Não estou ajudando ninguém. São só negócios. Estou contratando seus serviços."

"Só mais uns dias então. Até o tempo melhorar."

Nos primeiros dias o viajante pagou sua estadia reformando o estábulo, resolvendo fissuras na estrutura que facilitavam a entrada do frio, melhorando o ambiente para si e para os cavalos.

Quando o tempo melhorou, o empregador argumentou que não era possível garantir por quantos dias o sol permaneceria, assim, contratou o viajante para fazer reparos na casa. Ali ele só entrava de dia, e apenas se o viúvo estivesse em casa. Nunca dirigia a palavra à "menina". Todas regras impostas por ele mesmo. A filha do viúvo era uma jovem mulher, com um pouco mais de idade do que era costume se casar por aqueles lados, mas rejeitou sempre os pretendentes, agarrando-se ao compromisso de ajudar o pai.

Os reparos da casa duraram um mês.

"Senhor. Pode conferir tudo. Telhado, portas, janelas. Aproveitei para mexer nas suas ferramentas. Tirei ferrugem, amolei, lubrifiquei. Agora sigo com a primavera. Nunca vou esquecê-lo. Serei sempre grato."

O velho tinha uma expressão que oscilava entre contentamento e decepção. A menina também. Lendo os pensamentos do mudo senhor, aproximou-se.

"Nosso campo é pequeno, mas parece imenso quando apenas dois trabalham. A sua montanha não vai fugir. Trabalhe aqui na primavera. Ajude-nos no plantio."

Essa conversa aconteceu na varanda da casa, enquanto o sol nascente dourada o leste. O viajante tirou o chapéu e enxugou a testa com as mangas. Não havia trabalhado, mas era uma manhã muito quente. Olhou para o norte, "logo ali" e respirou fundo.

"Na viagem de volta...", contava o pai, "...meu pai, seu avô, estava desesperado de saudade de minha mãe e meus irmãos, mas nosso retorno foi adiado muitas vezes, pois ele nunca rejeitava um pedido de ajuda."

"Meu pai desconfiava dos deuses...", dizia o sonhador, " ...então ele assumia a responsabilidade de ser a ajuda que não vinha do céu.".

"Eu fico!", decretou o viajante.

A menina sorriu mais que o velho.

A lida com a terra, associada àquela intervenção, tornou impossível manter a regra de não falar com a moça. Trabalhavam juntos do nascer ao por do sol. Trocavam os conhecimentos do campo que cada um trazia de sua própria família. Eventualmente o velho anunciava uma dor nas costas e se retirava mais cedo para "esticar a coluna!", como ele mesmo dizia. O viajante e a "menina" se entre-olhavam e riam. Sabiam que ele ia dormir.

Na cadência das coisas do campo o tempo passou: limpeza da terra, arado, semeadura, irrigação, germinação, cuidados adicionais, verão, colheita, outono, olhares , inverno, "fique", primavera, mãos que se tocaram acidentalmente ao tentar alcançar uma enxada, sorrisos tímidos, verão, lamentos para a Lua, outono, insegurança, inverno, flertes, primavera,"eu não sei descrever o que sinto", verão, "não me deixe!", outono, "Me aceite e serei seu!", inverno, "Eu não vou durar muito. Proteja minha menina.", primavera, casamento, verão, velório, outono, tontura, inverno, "Está chutando!", Primavera, "É menina!"; primavera, "É menina!", Primavera, "Um menino!", primavera, primavera, primavera...

"Vovô. Conta sua história de novo."

"Vocês não enjoam?"

"Nunca!"

"Era uma vez um menino, meu pai, avô do seu pai. Esse menino reve um sonho e este sonho o levou a uma viagem.

O fruto desta viagem foi um totem e uma promessa."

"Que promessa vovô?"

"O totem era a imagem de uma serpente. Diz a lenda que ela protegia nossos ancestrais e sempre deixava um presente. A promessa era que ela devia um presente ao meu pai."

"E qual foi o predeny, vovô?"

"O presente foi perdê-la."

"Por quê?"

"Porque eu saí em uma longa viagem para reencontrá-la, mas não consegui. Ela me presenteou com algo que eu nunca procurei. O maior tesouro de todos."

"Que tesouro, vovô?"

"Sua avó, meus filhos, vocês. Uma vida muito boa. Principalmente, uma vida muito bonita."

"O senhor nunca foi para o norte, vovô?"

"Não, meus queridos. Seria desrespeito. Eu fui até onde ela queria que eu estivesse."

"E como o senhor sabe disso?"

"Porque vocês estão aqui e podemos ter essa conversa."

"Vocês estão amolando seu avô de novo?"

"Não brigue com eles, minha 'menina'. Eles gostam de ouvir. Eu gosto de contar."

"Por quê?"

"Te conhecer foi um presente imenso. Um privilégio. Eu aprendi a palavra 'privilégio' só para poder descrever. Serei sempre grato."


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