quarta-feira, 26 de outubro de 2011

#Vazio - Outra Manhã (10)


A fome consolidou em sua mente uma certeza prática. Naquele mundo varrido, não teriam o que comer. Levantou-se convicto de que a certeza de Valdomiro sobre a realidade daquele lugar o faria compreender a necessidade imediata de ação, não obstante a dor em seu coração. Aproximou-se do homem, imóvel a mirar o horizonte leste.
- Me perdoe. É difícil saber o que pensar de uma situação como a nossa. O que sei é que precisamos encontrar algo para comer, com urgência.
Não era capaz de imaginar por onde caminhavam os pensamos do homem da lança, o qual começou a falar:
- Eu mal sei ler, rapaz. Mas tive em meu colo uma sertanista. Quantas crianças de treze anos desejam isso? Ela herdou a inteligência da mãe. Juntei dinheiro por dois anos para levá-la às velhas florestas, mas este Vento maldito levou tudo antes que eu pudesse cumprir minha promessa.
Ele entrou na água até que esta quase lhe atingisse a cintura. Marcus temeu que a convicção daquele homem pela vida tivesse se extinguido, mas ele não foi mais fundo. Permaneceu imóvel por alguns momentos, com a lança erguida. Atingiu a água com um movimento rápido e certeiro.
- Parece que este lugar garante que não tenhamos dor no corpo, só pra esticar a dor do coração. Ele se virou com algo se sacudindo na ponta do canivete. Espero que goste de “xuxi”. Não temos fogo.
Era um peixe de uns trinta centímetros. Marcus não era capaz de reconhecer a espécie, pois só via peixes cortados em filé no mercado e sobre a mesa, saborosamente empanados por sua esposa. O homem saiu da água, arrancou a refeição do arpão improvisado e se agachou. Em silêncio limpou o animal da melhor forma que pôde, o dividiu em duas partes e ofereceu uma delas para Marcus. Este, por sua vez, apreciou em silêncio a iguaria, lamentou brevemente a ausência de molho de soja, mas a fome tornava aquela refeição deliciosa. A barriga cheia permitiu à mente o retorno às questões mas complexas.
- Como você poderia saber do vento do meio dia? O mundo ainda existia no meio dia de ontem!
Valdomiro o olhou confuso, mas seguiu com o diálogo:
- Do que “cê” tá falando, rapaz? Eu já vi este Vento do meio dia umas trinta vezes!
- Não entendo!
- Eu que não entendo. O mundo sumiu a um mês. Como você não viu?
- Palavra. Tudo estava aqui quando acordei ontem. Bem, quase tudo, pois as pessoas haviam sumido. Já passava do meio dia quando o vendaval levou embora o restante, me deixando para trás. Este é o primeiro “meio dia” que vejo neste lugar.
- Besteira. Você tá querendo é me confundir com esta lorota de ilusões e sei lá o quê.
- Eu sei lá. Só sei que não podemos passar o resto da vida aqui, comendo peixe e esperando o Vento.

Nenhum comentário:

Postar um comentário