Já com sono e com evidente dificuldade de seguir o raciocínio no médico, o
homem da cama levantou o olhar para o relógio e descobriu que já se aproximavam
das 22 horas. Retornando o olhar ao médico notou que seu cansaço o desapontava.
Havia alguma tensão no olhar do médico, enquanto aguardava a sequência da
conversa. Subitamente recordou suas palavras: “Nesta tarde você abriu os olhos
pela primeira vez em quinze dias.”.
- Você teme que eu durma, não? Disse enquanto se deitava, puxando o
lençol e se cobrindo até o queixo.
- Não posso obrigá-lo a permanecer acordado. Não quero comprometer nosso
avanço tampouco seu estado clínico, mas devo dizer que não gostaria de encerrar
nossa conversa assim.
Após um bocejo, o homem da cama deixou de lado o risco do longo sono,
retomando a conversa sobre os sonhos.
- O mundo é concreto, o sonho não. Isto basta! Todos nós sabemos
naturalmente diferenciar um sonho da realidade. Falou por falar. Lembrou do
Gênio Maligno de Descartes. Tentando se convencer do que dizia, reforçou. Meu
passeio no deserto não passou de ilusão.
- Mas o que é ilusão? Replicou o médico. A cama na qual você está deitado
é concreta, o lençol que te cobre, mas o que você me diz do café que eu tomei
esta manhã? Aquele café não existe concretamente em nenhum ponto do Universo a
não ser em minha memória. Todo o mar de experiências desde o peso da xícara, o
aroma, sabor e temperatura da bebida residem exclusivamente em minha memória,
EXATAMENTE como o seu deserto. Minha recordação do café deve ser então uma
ilusão, já que ele foi concreto apenas enquanto eu estive lá, e não mais agora,
repito, EXATAMENTE como o seu deserto.
- Você está misturando tudo. Protestou o homem da cama.
- Não, meu amigo! O que quero que perceba é que toda e qualquer
experiência que se tenha é única, portanto, não podemos reduzir o seu deserto,
tampouco o meu café da manhã, a meros acontecimentos do dia a dia ou de um
sonho. Perceba que quando eu morrer o café morrerá comigo, pois não haverá
ninguém em todo este vasto Universo que se lembre DAQUELE café, que foi
exclusivamente meu. Único! Precisamos considerar então seu passeio pelo deserto
como fantástico e único, independente de qualquer noção de concretude. Se o
café reside apenas em minha mente, como seu deserto reside na sua, não vivemos
em outro lugar senão em nossas mentes.
- Então me diga, Dr. Willian. Será tudo concreto, não importa o que
estejamos vivendo, ou será tudo ilusão?
O médico abriu a boca para seguir com a discussão, mas o paciente estava
dormindo. Suspirou desapontado, levantou em silêncio e saiu do quarto apagando
a luz.
Marcus notou o clarão se reduzindo. Estava deitado,
mas descoberto. Quando a luz imediatamente à sua frente se moveu vagarosamente
para a direita permitiu que se observasse os contornos da montanha, à sua
esquerda. Respirou fundo, atento ao ar que lhe enchia os pulmões, tão concreto
quanto o cascalho que lhe cutucava as costas. Sentou-se sem dificuldade e olhou
para o corpo pendurado à sua frente.
Continua em #Vazio - Outra Manhã (6)
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